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Qual o papel do setor público diante de serviços privatizados

O ‘Nexo’ mostra como é o acompanhamento dessas atividades e ouve pesquisadores do tema para entender como funciona a fiscalização e como são as respostas a crises

    A Enel disse nesta sexta-feira (10) que restabeleceu a energia de todos seus clientes na cidade de São Paulo, uma semana após o temporal que deixou milhões de pessoas no escuro. O caso abriu um debate público sobre a qualidade dos serviços privatizados no Brasil.

    Mesmo quando uma empresa ou serviço é repassado ao setor privado, o poder público continua tendo obrigações e responsabilidades.

    Neste texto, o Nexo explica quais são e ouve pesquisadores do tema para entender como funciona a fiscalização dessas atividades.

    As formas de desestatização

    O processo de repasse de empresas ou serviços públicos ao setor privado se chama “desestatização”. Mas, por convenção, a palavra geralmente usada no debate público é “privatização”.

    Tecnicamente, a privatização é apenas uma das formas de desestatização. São três as principais:

    • Privatização, que ocorre quando há venda total ou parcial de ativos. Um exemplo é o da Eletrobras: em 2022, a União vendeu ações na bolsa de valores até não ter mais o controle da maior empresa do setor elétrico brasileiro.
    • Concessão, que ocorre quando o governo cede a uma empresa o direito de explorar determinada atividade por um prazo pré-estabelecido. Um exemplo é o dos serviços de distribuição de energia elétrica. Em São Paulo, eles são prestados pela Enel, empresa italiana que tem contrato até 2028.
    • Parceria público-privada (PPP), que ocorre quando um empreendimento é levado adiante por meio de uma cooperação entre o governo e a iniciativa privada. Alguns exemplos são a administração do estádio do Mineirão, em Minas Gerais, e a linha 4-amarela do metrô de São Paulo.

    Há também um outro tipo de privatização, chamado de autorização. Diferentemente da concessão, a autorização é uma relação unilateral. O governo permite que uma determinada empresa atue em um certo setor, mas pode romper o vínculo a qualquer momento. O marco legal do gás de 2021, por exemplo, permite que gasodutos sejam construídos e ampliados dentro desse modelo.

    Regulamentar, fiscalizar e mediar

    As privatizações (em todas as suas formas) começam com um momento de estudo e desenho, tocado por diferentes atores do setor público — no caso do governo federal, pode envolver órgãos como o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e o PPI (Programa de Parcerias para Investimentos).

    Outra fase é a de venda e/ou assinatura do contrato. É quando de fato a empresa ou serviço público passa para o controle da iniciativa privada.

    Depois que ocorre a privatização, o governo geralmente não deixa de ter um papel relevante.

    “Se há, por exemplo, um supermercado estatal, você pode privatizar e acabou, não precisa ter nenhum tipo de monitoramento posterior. Mas no caso de serviços de utilidade pública, serviços públicos e monopólios naturais, aí é necessário ter regulação e acompanhamento”, disse ao Nexo Sérgio Lazzarini, professor do Insper e da Western University, no Canadá.

    A expressão “monopólio natural” se refere a casos em que, por causa do tipo de bem ou serviço, há uma barreira à entrada de concorrentes em um mercado. Isso geralmente acontece em casos que requerem grandes investimentos em infraestrutura. Um exemplo é o do saneamento: é difícil imaginar que duas empresas vão construir redes de esgoto que cheguem à casa de um consumidor para que ele escolha qual prefere usar.

    A função de regular as atividades das empresas desses setores de serviços de utilidade pública cabe às agências reguladoras, que podem ser ligadas ao governo federal ou aos estados. A função de regular envolve um conjunto de responsabilidades, que são:

    • Regulamentar, ou seja, criar regras para o setor e adaptá-las de acordo com as circunstâncias
    • Fiscalizar, ou seja, acompanhar a atuação das empresas para garantir que as regras estabelecidas na regulamentação estão sendo respeitadas. Isso inclui o cumprimento de metas de universalização e de parâmetros de qualidade dos serviços
    • Mediar, ou seja, fazer o intermédio da relação entre o governo e as empresas que prestam serviços de interesse público

    Joísa Dutra, diretora do FGV-Ceri (Centro de Estudos e Regulação em Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas), afirmou ao Nexo que a empresa que presta esses serviços de utilidade pública ser pública ou privada não faz diferença: ambos casos estão sujeitos à regulação pelas agências. “Não é porque é privatizado que se mudam as responsabilidades”, afirmou.

    Em um exemplo hipotético, imagine duas empresas de distribuição de energia elétrica, uma pública, pertencente ao governo estadual, e outra privada. A regulação da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) é a mesma nos dois casos.

    A autonomia das agências reguladoras

    As agências reguladoras, em teoria, são autônomas — ou seja, têm poder próprio de decisão. Mas não necessariamente é isso que se observa na prática.

    Ambos pesquisadores ouvidos pelo Nexo apontaram que há riscos de captura das agências, seja por interesses privados ou por grupos políticos.

    No caso dos interesses de empresas dos setores regulados, é possível que ocorra o fenômeno conhecido como “porta giratória”, em que as mesmas pessoas transitam com facilidade entre empresas e governo, havendo risco de interferência dos interesses privados sobre os públicos.

    No caso da captura por grupos políticos, isso ocorre pela via da escolha de diretores para as agências federais.

    No nível federal, essas indicações são feitas pelo presidente da República. Os nomes precisam ser aprovados pelo Senado Federal. Uma vez escolhido, o dirigente tem mandato fixo e não pode ser demitido. Os finais de mandato dos diretores não são coincidentes para evitar que os conselhos fiquem desfalcados de uma hora para outra e dificultar mudanças bruscas no perfil da equipe, indicada por políticos.

    A criação das agências reguladoras no Brasil remete aos anos 1990, em especial ao governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). A gestão do tucano foi marcada pelas privatizações em diversos setores, como telecomunicações, bancos públicos e distribuidoras de energia.

    Desde então, as agências foram alvo de críticas de diferentes presidentes, como Luiz Inácio Lula da Silva em seus primeiros mandatos (2003-2010), Dilma Rousseff (2011-2016) e Jair Bolsonaro (2019-2022). Em janeiro de 2020, por exemplo, o Nexo publicou um Expresso explicando a relação de Bolsonaro com as agências, e mostrando as tentativas de interferência.

    Como a regulação acontece na prática

    Quando uma agência reguladora assina um contrato de concessão com uma empresa, isso cria obrigações e direitos. “A empresa tem responsabilidade de cumprir o que se espera do serviço na letra do contrato e no espírito do contrato”, disse Lazzarini, do Insper. “Ao passo que o órgão regulador tem a obrigação de garantir que as variáveis de entrega estão sendo cumpridas”, afirmou.

    Os contratos de concessão e PPP podem ter longa duração, de décadas. Mas nem por isso são definitivos: é possível que sejam modificados com termos aditivos. O contrato da Enel com a Aneel para distribuir energia em 24 municípios do estado de São Paulo, por exemplo, já teve seis aditivos desde 1998 — o último deles em 2020.

    Há outro motivo pelos quais os contratos são dinâmicos. “Muitas vezes o contrato diz que determinadas coisas devem seguir a regulamentação”, disse Dutra, do FGV-Ceri. Mas a regulamentação em si pode ser alterada e adaptada frequentemente pelo agente regulador, desde que garantindo segurança jurídica. Essa é uma forma pela qual o contrato vai sendo indiretamente atualizado com o tempo.

    Após a assinatura do contrato, a agência deve acompanhar cotidianamente a operação da empresa. Ou seja, a fiscalização é periódica e não depende da ocorrência de um problema — embora deva ser acionada em momentos de crise.

    Se durante a fiscalização é detectado algum tipo de problema ou irregularidade, um processo administrativo pode ser aberto contra a empresa. Essa ação corre dentro da própria agência reguladora. Nesse processo, a operadora do serviço tem direito de defesa e de recursos. O resultado pode ser punitivo: seja na forma de uma multa ou, no limite, da perda do contrato.

    Na terça-feira (7), por exemplo, a Aneel abriu um processo administrativo para apurar a atuação das distribuidoras de energia paulistas após o temporal de sexta-feira (3). No caso da Enel, a multa pode chegar a até R$ 370 milhões, segundo a agência.

    Na prática, a regulação nem sempre é igual para todas as atividades. O acompanhamento varia de acordo com o setor ou com a região em que o serviço é prestado, segundo Lazzarini.

    De acordo com Dutra, a regulação também pode ser mais rigorosa a depender do objeto do contrato de concessão: geralmente é menos exigente no caso de uso de bens públicos; e mais exigente no caso dos serviços públicos, já que há uma responsabilidade maior de levar determinados produtos à população (e com um certo nível de qualidade).

    Por exemplo, a regulação tende a ser mais dura com distribuidoras de energia, que levam eletricidade aos consumidores, do que com uma empresa que tem contrato de concessão para operar uma hidrelétrica.

    Tanto Lazzarini como Dutra disseram que, na prática, a regulação dos diferentes setores no Brasil fica muitas vezes aquém do desejado.

    Segundo o professor do Insper, o poder público não investiu o quanto devia no fortalecimento das agências reguladoras. “Criamos as agências reguladoras na década de 1990 e a ideia era que elas seriam reforçadas, teriam quadros técnicos e autonomia. Mas não foi isso que aconteceu”, disse.

    Se a regulação não é bem feita, isso pode resultar em problemas como serviços de má qualidade sendo prestados à população, ausência de acompanhamento e monitoramento pelo poder público e incentivos menores para realização de investimentos pela iniciativa privada.

    Caso Enel: a resposta à crise sob análise

    No caso do apagão em São Paulo no início de novembro de 2023, houve casas que ficaram quase uma semana sem luz.

    Durante esse período, o prefeito da capital paulista, Ricardo Nunes (MDB) fez críticas à Enel; disse que o contrato de concessão firmado em 1998 é “frouxo”; e ainda chegou a sugerir a possibilidade de uma taxa para bancar o aterramento de fios — ele voltou atrás pouco depois.

    A empresa de distribuição, por sua vez, destacou a força dos ventos que atingiram a região metropolitana de São Paulo. Na sexta-feira (10), a companhia pediu desculpas aos clientes pela demora na restauração do serviço.

    “Como a gente não constituiu esse arcabouço de supervisão, que envolve múltiplas partes, fica cada um culpando o outro, e ficam pessoas durante dias sem luz. Não é um resultado interessante”, disse Lazzarini. O professor também criticou a atuação de Nunes: “Acho, em particular, que as declarações do prefeito foram desastrosas, incluindo a declaração sobre uma taxa para enterrar fios. Os bons governantes criam soluções e vão em frente”, afirmou.

    Já Dutra disse que faltou coordenação entre a Enel e a prefeitura na resposta à crise, e que Nunes fez críticas ao contrato “com desconhecimento de causa”, já que o acordo está sujeito a “atualizações regulares”.

    A diretora do FGV-Ceri também disse que a situação expôs a necessidade de adaptar a regulamentação do setor para o contexto de mudanças climáticas. “A companhia precisa identificar onde sua rede está mais vulnerável e avaliar como fazer investimentos para tornar suas redes mais robustas — e falar com o regulador sobre essas vulnerabilidades e investimentos”, disse Dutra.

    A pesquisadora ainda afirmou: “A regulação vai ter que estabelecer mecanismos para identificar a prudência dos investimentos frente a esses eventos climáticos extremos que tendem a se tornar mais frequentes e intensos”.

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