Abriu na terça-feira (24) no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, a exposição “Hiromi Nagakura até a Amazônia com Ailton Krenak”, que mostra os registros gerados durante as viagens que o fotojornalista japonês fez com o filósofo indígena nos anos 1990 em algumas das principais terras indígenas do Brasil.
Acompanhando Krenak como uma “sombra”, nas palavras de Eliza Otsuka, produtora e intérprete que acompanhou os dois, Nagakura conheceu povos como os Krikati, no Maranhão, Xavante, no Mato Grosso, e Ashaninka, no Acre, cujos “momentos de intimidade e contentamento” aparecem agora nas 110 imagens da exposição.
Neste texto, o Nexo apresenta o que há na mostra de Nagakura e Krenak e qual a história da amizade dos dois e dos povos que os receberam na Amazônia. Mostra ainda a trajetória do fotojornalista e os destaques da programação que acompanha a exposição no Tomie Ohtake.
O que há na exposição
A mostra no Instituto Tomie Ohtake divide em três salas os registros feitos por Nagakura quando viajou com Krenak entre 1993 e 1998. Duas vezes por ano, o fotojornalista acompanhou o filósofo indígena em visitas a territórios no Acre, Amazonas, Mato Grosso, Roraima e Maranhão, onde conviveu com povos como Ashaninka, Xavante, Krikati, Yawanawá e Yanomami.
Imagens do cotidiano, de rituais e da intimidade dos povos indígenas estão entre os destaques da exposição. Krenak, curador da mostra, descreve no texto que a apresenta que andou com o fotojornalista por dezenas de aldeias onde “a vida continua vibrante como nos primórdios da criação” e os seres humanos “brincam na chuva como crianças felizes com a vida”.
A amizade que se desenvolveu nesses percursos não se limitou à dupla, apresentada por Eliza Otsuka em São Paulo, nos anos 1990: incluiu representantes dos povos visitados, “pessoas queridas que nos receberam em suas cozinhas e canoas, sua praias de rios e nas aldeias”, nas palavras de Krenak. Todos os registros de Nagakura tiveram consentimento dos fotografados.
A história dessa aproximação foi contada em 1998 no livro de Nagakura “Assim como os rios, assim como os pássaros: uma viagem com o filósofo da floresta, Ailton Krenak”, que o indígena considera uma biografia. Outras obras e documentários para a emissora japonesa NHK foram produzidos, com audiência relevante no país asiático. Essa é a primeira vez que uma mostra sobre o projeto é feita no Brasil.
A aproximação entre filósofo e fotógrafo
Krenak e Nagakura se conheceram na sede da Aliança dos Povos da Floresta, em São Paulo. O fotojornalista tinha vontade de acompanhar o líder indígena, já na época um dos mais conhecidos do Brasil, depois de ter visto seu histórico discurso no Congresso Nacional em 1987. Krenak havia pintado o rosto com pasta de jenipapo pela inclusão dos direitos indígenas na Constituição Federal:
Nagakura tinha simpatia pela causa indígena no Brasil, como contou ao Nexo. Experiente em coberturas como os conflitos na Palestina e a derrubada do apartheid na África do Sul, estava interessado em entender como as etnias viviam depois de séculos de colonização. Para ele, na companhia de Krenak, conseguiria criar relações pessoais com os povos originários.
Naquela época, o líder indígena visitava aldeias ao lado de cientistas, para desenvolver pesquisas sobre conservação da biodiversidade nas terras indígenas. Esse trabalho definiu os destinos visitados pelos dois. Nagakura conta que Krenak foi um guia não só de turismo, mas espiritual, com quem aprendeu uma nova forma de ver a natureza:
“O primeiro momento em que me assustei foi quando o Ailton [Krenak], diante da floresta, no encontro com a sumaúma, rezou. Depois, quando foi colher a água do rio, disse: ‘esta água é minha irmã’ e ficou conversando com ela. Esses encontros de entrar na floresta, respeitar, estar integrado com a vida da floresta, me impressionaram muito”
“[Nagakura] era tão grande como jornalista, como fotógrafo, que [a proposta] me intimidou um pouco”, disse Krenak ao Nexo sobre o início da parceria. “Depois pensei: vai ser uma experiência muito original. Eu não conhecia, naquela época, nada na literatura de duas pessoas tão antípodas se encontrando para fazer uma coisa juntos na pura confiança.”
A amizade com as comunidades
Krenak conta que Nagakura chegava às aldeias e “não denunciava” que era fotógrafo. Apenas era percebido com uma câmera quando já era conhecido pelas famílias que os recebiam. “Era tão discreto que poderia ser percebido como um pesquisador”, disse. “O jornalismo não costuma ter esse cuidado”.
A fotografia sempre foi para o japonês um instrumento para se relacionar com o mundo e sua diversidade. Essa vontade rendeu a ele vínculos sinceros com os fotografados na Amazônia. Tanto é que, na exposição em cartaz em São Paulo, diversas lideranças indígenas estão incluídas na programação, como partes ativas do trabalho que se quer mostrar.
Krenak define sua curadoria para o Tomie Ohtake como uma “curadoria de afetos”, sem pretensão conceitual, mas com um “interesse afetivo” em celebrar os encontros firmados três décadas atrás na Amazônia. Além dos povos da região, participam da mostra integrantes da etnia Guarani, de São Paulo, cujas aldeias também receberam a dupla nos anos 1990.
“Nagakura fez uma rede de relações [a tal ponto] que todos estavam implicados uns com os outros”, disse Krenak. Ele citou o líder afegão Ahmad Shah Massoud — cuja ascensão foi registrada pelo fotojornalista —, que o considerava um amigo, mesmo sem tê-lo visto fisicamente. “[Nagakura] sensibilizou pessoas que achavam que o mundo podia melhorar”, afirmou.
Quem é Hiromi Nagakura
Nascido em 1952 na cidade de Kushiro, ao norte da ilha de Hokkaido, no Japão, Nagakura formou-se em direito, mas seguiu a carreira de fotógrafo. Trabalhou no início da profissão na agência de notícias Jiji Press, inspirado em fotógrafos reconhecidos por cobertura de guerras. Aos 27 anos, tornou-se fotojornalista independente.
Viajou para dezenas de países. Conheceu a África do Sul, Zimbábue, União Soviética, Afeganistão, Turquia, Líbano, El Salvador, Bolívia, Peru, Indonésia, México e vários outros, em todos os continentes. Reconhecido no japão, realizou diversas exposições e publicou livros, além de ter escrito reportagens e sido personagem de documentários.
Krenak, que define o fotojornalista como “um samurai”, afirmou que a exposição no Tomie Ohtake é uma oportunidade de reconhecimento para o colega no Brasil. Para ele, Nagakura é da mesma relevância de fotógrafos como Claudia Andujar. “É um fotógrafo de reconhecimento internacional, mas ainda não conhecido no Brasil. O Brasil é um país tão colonizado que só valoriza o que os Estados Unidos e a Europa fazem”, disse.
O fotojornalista define o novo imortal da Academia Brasileira de Letras como uma “pessoa rara”. “Ailton tem espírito de criança, mas também vê todas as pessoas do nível do Universo”, afirmou. Ambos participaram na terça (24) do evento de abertura da exposição, que contou também com a presença de Ricardo Ohtake, que ajudou a realizar a mostra no Brasil.
O que há na programação
A visitação da mostra no Tomie Ohtake dura até fevereiro de 2024. O instituto está aberto de terça a domingo, e a entrada é gratuita. Para encontrar informações sobre os horários e a programação que complementa a exposição, basta acessar o site do espaço.
Destacam-se na programação as mesas de conversa das quais participam Krenak, Nagakura e diversas lideranças indígenas do Brasil. Os eventos vão acontecer até a sexta-feira (27). A entrada é gratuita, e os 200 lugares vão ser distribuídos por ordem de chegada.
Na sexta (27) também haverá o lançamento do livro “Um rio, um pássaro”. Com um texto de Nagakura dos anos 1990 e um de Krenak de 2023, a obra trata tanto das jornadas da dupla há três décadas quanto do atual colapso ambiental, tema que o filósofo indígena já explorou em trabalhos como “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019).
Outras atividades vão ocorrer em novembro. Com presença dos povos Guarani, Huni Kuin e Xavante, o Tomie Ohtake prepara três semanas de programação com oficinas de trançado palha, pintura corporal, contações de histórias e apresentações de canto e dança, entre outros. A programação detalhada e o link para as inscrições estão no site do instituto.