Com o agravamento das contaminações e mortes por covid-19 no país, quase metade dos estados brasileiros está com 80% ou mais de ocupação dos leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva), situação que é considerada crítica. Em fevereiro, às vésperas de o mundo completar um ano em estado de pandemia, várias regiões brasileiras bateram recordes de internações de pacientes com quadros graves da doença.
São Paulo, por exemplo, registrou na segunda-feira (22) o maior número de internações nas unidades de terapia intensiva do estado desde o início da pandemia, em março de 2020. São 6.410 pacientes em UTIs. A marca foi atingida depois de um aumento de 5,6% nas internações no período de apenas uma semana. O pico anterior de ocupação dos leitos havia ocorrido em julho, com 6.250 internações.
Os recordes têm sido registrados em regiões do Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste. Um levantamento publicado pelo jornal O Globo na terça-feira (23) mostrou que o nível crítico nas UTIs é observado no Acre, Amazonas, Bahia, Ceará, Goiás, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia e Santa Catarina, além do Distrito Federal.
Os demais estados tinham ocupação que variava de 60% a 80%. Apenas o Maranhão ficava abaixo dos 60%. Minas Gerais e Amapá não informaram os dados. Na terça-feira (23), o Brasil completou 34 dias consecutivos com uma média móvel de mais de mil mortes pela doença.
8,7%
foi o crescimento das internações por covid-19 na rede pública de saúde de 12 a 22 de fevereiro, segundo levantamento do jornal O Globo
28,8 mil
pacientes com coronavírus estavam internados em leitos de enfermaria e UTI do SUS (Sistema Único de Saúde)
Os recordes pelo país
Diferentemente do que ocorreu no início da pandemia, quando as capitais foram as primeiras a serem atingidas pela doença, num processo que foi seguido da interiorização do vírus — o que levou ao colapso dos sistemas de saúde de várias regiões em momentos distintos —, o agravamento da pandemia em 2021 tem atingido o país como um todo, de maneira sincronizada, devido à presença da covid em todo o território.
Em fevereiro, recordes de internações foram registrados no Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Goiás e Bahia. A situação tem forçado os estados a adotar medidas mais rígidas para tentar frear os números.
A Bahia, por exemplo, registrou o quarto dia seguido de recordes de internação em UTI na segunda-feira (22), quando tinha 912 internações. Cinco dos 14 hospitais de Salvador que atendem pelo SUS estavam com 100% de ocupação na terça-feira (23). No município de Camaçari, havia filas de espera para leitos. O próprio secretário de Saúde do estado, Fábio Vilas Boas, estava internado na UTI por causa da doença.
No domingo (21), o governador da Bahia, Rui Costa (PT), ampliou o toque de recolher que vigorava desde o dia 19. Ele vale para o período das 20h às 5h (antes da mudança, a restrição começava às 22h). Bares e restaurantes estão funcionando até as 18h, e o transporte metropolitano só atende a população até as 20h30. “Estamos vivendo um momento extremamente grave e conto com a compreensão de todos”, escreveu o governador em suas redes sociais.
Em entrevista ao jornal Correio, da Bahia, na sexta-feira (19), o médico e neurocientista Miguel Nicolelis, que foi coordenador do comitê científico de combate à covid do Consórcio Nordeste, criticou a medida por ser ineficiente. “Onde o toque de recolher foi testado, provou não ser eficaz. Na Europa, todos os lugares que tiveram evoluíram para um lockdown logo depois. Isso é uma questão de dias. Essas medidas paliativas não têm efeito”, afirmou.
No Rio Grande do Sul, Porto Alegre registrou na terça-feira (23) o maior número de internações desde o começo da pandemia. Durante a manhã, a cidade tinha 97,35% dos leitos ocupados.
Em entrevista a uma rádio, o governador Eduardo Leite (PSDB) cobrou os prefeitos a agirem para que as medidas de isolamento sejam cumpridas. O estado adotou um modelo de cogestão em que os prefeitos podem adaptar as restrições às realidades locais.
“O estado está em um momento crítico e toda a circulação que pode ser evitada, deve ser evitada. Ao governador, antes de tudo, cabe dar o alerta. E este é o alerta: o estado está em altíssimo risco de contágio e em eventual falta de atendimento para todos. Todos devem fazer sua parte antes mesmo de haver uma determinação para não sair nas ruas”, disse na terça-feira (23).
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Casos mais graves, quarentenas ampliadas
Os governos têm alertado para mudanças na característica da pandemia. Depois de uma primeira onda entre março e agosto, os casos voltaram a aumentar em outubro e vinham caindo em janeiro, mas a tendência se reverteu em várias regiões, dando início a um terceiro aumento em fevereiro. Segundo o governador gaúcho Eduardo Leite, o vírus agora tem atingido grupos que durante a primeira onda pareciam mais protegidos.
“O que estamos observando no momento é diferente do que observamos nos momentos passados. O vírus tem parecido mais agressivo com pessoas mais jovens, temos observado uma disseminação mais rápida, um contágio maior e o risco de falta de atendimento é real”, afirmou Leite durante transmissão pela internet.
Em São Paulo, o coordenador executivo do Centro de Contingência da Covid-19, João Gabbardo, disse na segunda-feira (22) que os pacientes têm permanecido por mais tempo na UTI, o que indicaria que eles já estão sendo internados com quadros mais avançados da doença.
O centro de contingência determinou na quarta-feira (24) a ampliação da fiscalização contra aglomerações de pessoas entre as 23 horas e as 5 horas.
Algumas cidades do interior paulista, onde a situação é mais grave, adotaram medidas rigorosas. Araraquara decretou lockdown em 15 de fevereiro depois de ter identificado casos da nova variante de Manaus na cidade. Há indícios de que a mutação brasileira seja mais transmissível, mas ainda não há comprovação científica disso, e especialistas dizem que as variantes, por si só, não explicam o aumento de casos.
Na estratégia de Araraquara, houve a proibição da circulação de pessoas a partir do domingo (21), por um período de 60 horas, no que foi chamado de lockdown total. Ele é válido até quarta-feira (24). Até os supermercados fecharam, embora as entregas tenham sido permitidas. Os serviços de saúde foram os únicos que puderam ficar abertos.
A medida é muito mais rigorosa, por exemplo, do que a adotada na Paraíba, que anunciou na segunda-feira (22) toque de recolher das 22h às 5h e o fechamento de acessos a praias, a exemplo do que fez a Bahia. Restrições parciais vêm sendo tentadas no país desde 2020, mas esbarram na falta de fiscalização. Mesmo lockdowns testados em cidades como São Luís, no Maranhão, não foram tão rígidos como o de Araraquara.
Ao jornal O Globo, na terça-feira (23), a especialista em Saúde Pública da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Lígia Bahia disse que a explicação para a nova onda da doença está na ausência de bloqueio da transmissão do vírus.
“As novas variantes podem ser mais transmissíveis e potencializar o aumento de casos, mas não explicam esse cenário, que é caracterizado pela abertura de atividades não essenciais de maneira caótica. O repique decorre do aumento da circulação e aglomeração, em transportes coletivos lotados, bares, restaurantes, festas, além do uso eventual e incorreto de máscaras”, afirmou.
Cenário com poucas vacinas
Com a campanha de vacinação contra a covid-19 caminhando de forma lenta no Brasil, a solução dos gestores públicos deve ser o fechamento das atividades não essenciais. Até terça-feira (23), apenas 2,8% da população havia recebido uma dose da vacina — a proporção de vacinados com as duas doses necessárias era de 0,6%.
Para que o vírus encontre dificuldade de circular, estima-se que quase a totalidade da população que pode ser imunizada receba as duas doses. O Brasil tem uma população de 211 milhões de pessoas. No ritmo atual, o país só atingiria a meta em 2024.
Em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo na terça-feira (23), um grupo de médicos e pesquisadores, como o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, e os professores da USP Marcos Boulos e Gonzalo Vecina escreveram que “em nenhum momento a covid-19 assolou o Brasil como agora”.
“Crescem as internações e mortes. Disseminam-se variantes virais, provavelmente mais transmissíveis e talvez causando doença mais grave. Pior: é possível que essas variantes escapem à imunidade conferida pelas vacinas”, dizem.
Eles defendem que os gestores adotem medidas que já demonstraram ao longo da pandemia ter eficácia na redução de casos, como o “distanciamento social por fechamento de comércio, inibição de aglomerações e uso rigoroso de máscaras”. “São o único (amargo) caminho para interromper a progressão da covid-19”, disseram.
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