Uma semana após ficar sem oxigênio em hospitais da rede pública e registrar mortes devido à falta de atendimento adequado, Manaus ainda sofria na quarta-feira (20) com a falta do insumo. Famílias madrugaram na fila em frente a uma empresa que produz o material para encher cilindros e levá-los aos pacientes internados.
O problema se alastrou também para o interior do Amazonas, com novos registros de mortes, e para cidades vizinhas no Pará que fazem divisa com o estado. A alta abrupta de casos de covid-19 em janeiro superlotou hospitais e levou o sistema de saúde ao colapso.
Para atender a uma demanda por oxigênio cinco vezes maior do que a média diária antes da crise, o estado passou a receber cilindros em quatro voos diários de aviões da FAB (Força Aérea Brasileira).
Insumos também estão sendo enviados por balsas, e o estado anunciou a criação de pequenas usinas de oxigênio, ainda sem prazo para começar a operar. Houve ainda doações do produto por empresas, ONGs, pessoas físicas (entre as quais personalidades públicas) e governos como o da Venezuela, que enviou carretas com o material.
Desde 15 de janeiro, pacientes começaram a ser transferidos para outros estados na tentativa de desafogar os hospitais do Amazonas e diminuir a demanda pelo insumo. Segundo o governo estadual, o plano era transferir 235 pessoas — até a quarta-feira (20), 131 tinham sido levadas a outros estados. As UTIs (Unidades de Terapia Intensiva) em Manaus estavam com a ocupação total quase completa até o início da semana do dia 17, e os leitos clínicos operavam acima da capacidade total.
15 mil
metros cúbicos de oxigênio medicinal eram consumidos por dia, em média, no Amazonas, antes da crise
76 mil
metros cúbicos é o volume diário de oxigênio necessário para atender todo o estado após a alta de casos
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A crise no interior
Em municípios do interior do Amazonas, com estrutura mais precária se comparados a Manaus (o que leva muitas famílias a pedirem transferência para leitos na capital), hospitais chegaram a ficar sem oxigênio por algumas horas devido a problemas no envio do material.
Segundo informações das prefeituras e do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Amazonas, as cidades de Coari, Manacapuru, Itacoatiara e Iranduba registraram ao menos 27 mortes por falta de oxigênio desde 14 de janeiro. A Defensoria Pública fala em 30 mortes na mesma região entre 15 e 19 de janeiro causadas pela falta do insumo.
Sete mortes ocorreram no Hospital Regional de Coari na terça-feira (19), e a prefeitura acusou o governo estadual de usar parte dos cilindros que seriam destinados à cidade para amenizar a falta de oxigênio em Manaus. A Secretaria de Saúde do Amazonas disse que a gestão do sistema de saúde da cidade é exclusivamente da prefeitura, por opção do próprio município, mas que mesmo assim auxilia os hospitais locais com o fornecimento de oxigênio.
Já a cidade de Manacapuru, onde vivem cerca de 98 mil pessoas (em Manaus são 2 milhões), atingiu em 14 de janeiro um recorde de 11 mortos num único dia durante a pandemia do novo coronavírus. As mortes ocorreram porque o hospital da cidade ficou sem oxigênio.
A situação também é grave em municípios vizinhos que fazem divisa com o Amazonas. Num distrito da cidade de Faro, no Pará, sete pessoas morreram entre segunda-feira (18) e terça-feira (19) com sintomas de covid-19 porque a unidade básica de saúde em que foram atendidas não tinham cilindros de oxigênio cheios para atender pacientes com infecção respiratória.
As investigações sobre o caso
O Ministério Público do Estado do Amazonas apura a quantidade de mortes por falta de atendimento médico adequado durante a crise sanitária e as responsabilidades pela situação. Os leitos de internação são gerenciados, majoritariamente, pelo governo do estado.
Entre abril e junho de 2020, o Amazonas também enfrentou dificuldades para lidar com o número de casos e mortes pelo novo coronavírus. Houve um aumento de óbitos em casa devido à falta de capacidade de atendimento do sistema hospitalar, e os cemitérios tiveram que abrir valas coletivas para enterrar as vítimas da doença. O estoque das empresas na época foi suficiente para evitar falta de oxigênio.
Em novembro de 2020, porém, a própria Secretaria de Saúde do Amazonas já previa que a demanda pelo produto subiria com a segunda onda de covid-19 e que a produção da empresa White Martins, que fornece oxigênio para os hospitais no estado, não seria suficiente.
O governo federal também estava ciente dos riscos. A Força Nacional do SUS (Sistema Único de Saúde), formada para agir em situações de calamidade e destacada pelo Ministério da Saúde para avaliar o quadro em Manaus, havia produzido relatórios sobre a escassez de oxigênio na capital amazonense desde 8 de janeiro.
O ministro Eduardo Pazuello esteve na cidade entre 11 e 13 de janeiro, já tendo conhecimento do problema, mas as ações anunciadas na ocasião não foram suficientes para evitar as mortes. Em vez de providenciar o oxigênio necessário para os hospitais, o ministério fez propaganda para a adoção de um suposto “tratamento precoce” contra a covid-19, com remédio ineficazes contra a doença, como a hidroxicloroquina, amplamente divulgada pelo presidente Jair Bolsonaro. Não existe remédio para evitar os sintomas da covid.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao Ministério da Saúde na segunda-feira (18) a abertura de um inquérito epidemiológico e sanitário para apurar as causas e responsabilidades sobre a crise no Amazonas. Também solicitou ao (STJ) Superior Tribunal de Justiça investigações sobre uma possível omissão do governo do estado e da Prefeitura de Manaus sobre a falta do insumo.
O vice-presidente do STJ, Jorge Mussi, determinou na terça-feira (19) que o estado e os municípios do Amazonas fornecessem em 48 horas detalhes sobre o uso de recursos federais para o combate à pandemia.
Segundo ele, os indícios apurados pelo Ministério Público Federal apontam a “possibilidade de que tenha havido ilegalidades diversas no emprego de recursos federais destinados ao enfrentamento da pandemia no Amazonas”.
Houve reação também no Supremo. O ministro Ricardo Lewandowski havia determinado em 15 de janeiro que o governo federal tomasse todas as ações necessárias para debelar a crise. Ele recebeu como resposta um plano de ação do Ministério da Saúde no Amazonas, mas considerou o documento “insuficiente” e pediu o envio de outro “compreensível e detalhado”.
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