O Brasil vivia o segundo ano da redemocratização quando o governo federal censurou um filme com a justificativa de que ele ofendia a fé cristã. Era “Je vous salue Marie” (“Eu vos saúdo Maria” no Brasil), uma das obras mais conhecidas do diretor franco-suíço Jean-Luc Godard. Ele completa 90 anos na quinta-feira (3).
Godard é um dos cineastas franceses mais influentes do século 20, diretor de obras como “Acossado” (1960), “Uma mulher é uma mulher” (1961), “O desprezo” (1963) e “Alphaville” (1965). Intelectual e experimental, seu trabalho serviu de inspiração para cineastas como Martin Scorsese, Quentin Tarantino e Wong Kar-Wai.
Projetando-se inicialmente na nouvelle vague francesa, movimento vanguardista iniciado no final dos anos 1950, o cineasta apostou na subversão da narrativa cinematográfica. Avesso à lógica hollywoodiana do cinema como espetáculo, Godard apostou em produções despojadas e baratas, muitas vezes herméticas.
Influenciado pelo marxismo, Godard politizou seu cinema na segunda metade da década 1960. Deste período é “La chinoise” (1967), uma crítica à militância pequeno-burguesa em que quatro estudantes influenciados pelas ideias de Mao Tsé-Tung planejam atos revolucionários.
Nos anos 1980, o diretor realizou a chamada “trilogia do sublime”, composta pelos filmes “Paixão” (1982), “Carmen de Godard” (1983) e “Je vous salue Marie” (1985). Nessa trinca, Godard abordou temas como sexualidade e moral.
O filme sobre Maria
No último filme da trilogia, a história do dogma da Imaculada Conceição é transplantada para a era moderna. A Maria contemporânea (a atriz Myriem Roussel) trabalha com o pai em um posto de gasolina e joga basquete com as amigas. Ela namora um motorista de táxi chamado José, com quem não mantém relações sexuais pois quer preservar a virgindade. Um dia, o casal recebe o aviso de que Maria está grávida, o que os deixa perplexos. Maria percebe que foi escolhida por uma força superior.
A produção tem diversas cenas em que Maria aparece nua, inclusive frontalmente, entre situações corriqueiras e sugestões de sensualidade. Em alguns trechos, o filme explora o conflito entre os desejos terrenos e o chamado espiritual da personagem. Em um deles, Maria resiste à vontade de se masturbar. Em outra cena, ela ajuda um desconfiado José a comprovar com a mão que, apesar de grávida, continua virgem.
O filme foi condenado pela Igreja Católica como sacrílego. O então papa João Paulo 2º afirmou que a produção “distorce e calunia o significado espiritual e o valor histórico e fere de maneira profunda os sentimentos religiosos dos que têm fé e o respeito pelo sagrado e pela figura da Virgem Maria”.
A proibição no Brasil
Antes mesmo de chegar ao Brasil, o filme estava na mira da Igreja e entidades católicas. Em novembro de 1985, ele teve uma sessão cancelada no FestRio. A direção do festival negou, mas artistas acusaram o evento de ceder à pressão religiosa.
Em fevereiro de 1986, atendendo a pedido da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), o então presidente José Sarney proibiu a distribuição da produção em todo o território nacional.
“O presidente José Sarney é um homem profundamente religioso… e atendeu um apelo da Igreja. Ele vai à missa todos os domingos, lê sempre o Evangelho, e não iria contrariar o espírito cristão do povo brasileiro”, afirmou o então porta-voz da presidência, Fernando César Mesquita.
Até 1988, filmes, novelas, minisséries, peças de teatro, livros e jornais ainda eram submetidos à censura federal e podiam ser vetados. A prática só terminou com a Constituição de 1988, que aboliu a censura e estabeleceu a classificação das obras por faixa etária. “Je vous salue Marie” foi o último ato de censura autorizado pelo Ministério da Justiça.
Curiosamente, Coriolano de Loyola Cabral Fagundes, então diretor do Divisão de Censura Federal, foi contra o veto do filme. Em seu despacho, a autoridade escreveu que no filme “em momento algum, há qualquer gesto de irreverência para com Maria”.
Nem todos na Igreja Católica tinham a mesma opinião sobre a censura. O então arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, afirmou que a proibição aumentou em “mil por cento” o interesse em cima do filme. Para Arns, a religiosidade deveria ser respeitada, mas aqueles que queriam ver o filme não poderiam ser privados desse direito.
Apesar da proibição, aconteceram sessões do filme em algumas universidades, como a USP (Universidade de São Paulo) e a PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica). No caso da PUC, a Polícia Federal chegou a invadir o campus para apreender a cópia que era exibida por veteranos para recepcionar calouros. De acordo com relatos dos estudantes à imprensa, a polícia agiu agressivamente, chegando a atirar para o alto.
No jornal O Estado de S. Paulo, o crítico de cinema Rubens Ewald Filho escreveu que “pelo menos agora acabou-se a hipocrisia”, uma vez que a censura mostrava que a democracia e a Nova República eram uma farsa. “Je vous salue Marie” permaneceu proibido no país por dois anos e nove meses.