Para boa parte da população brasileira, a crise da pandemia do novo coronavírus levou a uma diminuição do dinheiro que entra a cada mês. E menos renda significa mais dificuldade para pagar as contas e, muitas vezes, a necessidade de se endividar até a atrasar o pagamento de contas.
Esse movimento se reflete nos dados de endividamento e inadimplência na pandemia. Endividamento e inadimplência não são a mesma coisa. Uma dívida é um valor que precisa ser pago em algum momento futuro pré-determinado. É o que acontece, por exemplo, quando uma pessoa faz uma compra parcelada no cartão de crédito. Ela se compromete a pagar o restante do valor em um determinado momento. A inadimplência acontece quando a pessoa não respeita esse período e deixa de pagar a dívida. Se alguém não paga as contas ou boletos no prazo, torna-se inadimplente.
Dados divulgados em 28 de julho pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo mostraram que tanto endividamento quanto inadimplência estão em alta no Brasil. Os números fazem parte da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, que coleta mensalmente dados de 18 mil famílias espalhadas por todas as capitais brasileiras e o Distrito Federal. Abaixo, o Nexo traz os principais números da pesquisa – e o que eles significam para a economia brasileira.
Endividamento e inadimplência
Entre as famílias ouvidas pela pesquisa, 67,4% estavam endividadas em julho de 2020. As dívidas contempladas podem ter diferentes origens: cartão de crédito, cheque especial, carnê de loja, cheque pré-datado, prestação de carro e de casa, etc.
Esse número é o mais alto da série histórica da pesquisa, que se inicia em 2010. Em relação a julho de 2019, o aumento foi de 3,3 pontos percentuais. Em fevereiro de 2020, logo antes do agravamento da crise do coronavírus, 65,1% das famílias tinham dívidas – o que significa que em pouco tempo houve um crescimento considerável nessa taxa de endividamento.
RECORDE DA SÉRIE
Além do endividamento, a pesquisa da CNC mostrou que a inadimplência também está em alta em 2020. O número de julho não chega a ser o maior da história – no início de 2010 e no segundo semestre de 2017 houve momentos em que mais famílias tinham contas atrasadas.
Por outro lado, o número de famílias que afirmaram à pesquisa que não terão condições de pagar as contas que estão atrasadas nunca esteve tão alto: são 12% das famílias, no total.
INADIMPLÊNCIA EM ALTA
Os tipos de dívida
O cartão de crédito é disparadamente a dívida mais comum, de acordo com a pesquisa da CNC. O perigo disso é que os juros do cartão são muito altos, com taxas médias chegando a acima de 200% ao ano.
ORIGEM DAS DÍVIDAS
O “domínio” do cartão de crédito no endividamento das famílias brasileiras não é novidade. Desde 2010, ano de início da série da pesquisa, a dívida de cartão de crédito atinge sistematicamente mais de 70% da população. O segundo tipo mais comum de dívida – atrás por uma longa margem – são os carnês das lojas. Na sequência, estão o financiamento de carros e casas.
A desigualdade do endividamento
Outro apontamento relevante dos dados da CNC é a disparidade entre o endividamento de famílias de menor e maior renda. No período da pandemia, o número de famílias endividadas com menos de dez salários mínimos de renda mensal (R$ 10.450 em 2020) aumentou. Em janeiro, 66,1% das famílias que ganhavam menos de dez salários mínimos estavam endividadas; seis meses depois, 69%.
MOVIMENTOS OPOSTOS
Enquanto isso, a proporção de famílias endividadas com rendimento mensal acima de R$ 10.450 caiu, apesar da pandemia e da crise econômica que a acompanha. Houve um crescimento na taxa de endividamento das famílias de maior renda até abril, mas a queda entre maio e julho mais que compensou o aumento inicial. Em julho, 59,1% das famílias de maior renda estavam endividadas.
Os números da inadimplência também mostram a diferença nos movimentos. Entre a população de renda mais baixa, a inadimplência subiu de 26,9% em janeiro para 29,7% em julho. Para quem ganha mais de dez salários mínimos, a inadimplência ficou estável, atingindo em torno de 11% das famílias.
Na pandemia, há diversos fatores que apontam para um aumento da desigualdade de renda no Brasil. Em um texto publicado em maio, o Nexo ouviu três economistas que citaram diferentes motivos para isso. Entre as razões indicadas estão: maior vulnerabilidade de trabalhadores informais; menor espaço em pequenos negócios para absorver choques negativos; mercado de trabalho desigual e precário; assimetria no contágio pela covid-19, com maiores números entre os mais pobres; e maiores dificuldades de acesso à educação entre a população de baixa renda.
O que os dados da CNC mostram é que os efeitos díspares da pandemia vão além da questão da renda. As trajetórias do endividamento e da inadimplência também são marcadas pela desigualdade.
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Os efeitos para a população e a economia
Uma matéria publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo na segunda-feira (3) mostrou que o padrão de vida da população brasileira deve registrar em 2020 a pior queda desde a década de 1940, início da série histórica. A expectativa é que o PIB per capita (Produto Interno Bruto dividido pelo número de habitantes) caia 6,7% no ano.
Com menor padrão de vida e mais dívidas, a tendência é que o cenário dos próximos anos seja ruim para os brasileiros. A situação fica mais grave quando se considera o estado do mercado de trabalho em 2020, com milhões de pessoas perdendo seus empregos desde o início do ano, e as incertezas sobre o ritmo da recuperação econômica pós-crise.
O endividamento e a inadimplência em alta podem, inclusive, prejudicar essa retomada da economia brasileira. Com contas a pagar, as pessoas dificilmente vão contratar novas dívidas. Com menos gente para comprar, o comércio vende menos, as indústrias produzem menos e a crise tende a continuar. Com a alta inadimplência das famílias, a reanimação teria de ser feita por outro setor da economia que não o consumo, como os investimentos privados ou os gastos do governo.
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