Um mês depois da realização das primárias da eleição presidencial, a Argentina passa por uma grave turbulência política e econômica.
O pleito antecede as eleições, marcadas para 27 de outubro, e é visto como uma projeção realista do que pode vir a ser o primeiro turno.
A derrota do atual presidente Mauricio Macri para o oposicionista Alberto Fernández por uma margem de 15 pontos percentuais foi seguida por uma reação negativa dos mercados, o que impulsionou a desvalorização acelerada do peso argentino e queda brusca da bolsa. Um dos motivos por trás do temor dos agentes é o possível retorno ao poder da ex-presidente Cristina Kirchner, vice da chapa que venceu as primárias.
DESVALORIZAÇÃO DO CÂMBIO
BOLSA EM QUEDA
Nos trinta dias que seguiram as primárias argentinas, o peso teve desvalorização acumulada de 22,8%. Já o Merval, principal índice da bolsa argentina, teve queda de 37,6% no período.
Pelo mundo, o governo Macri tem sido tratado como “moribundo”. E enquanto a atual administração passa por uma autópsia precoce, os agentes econômicos já se preparam, preocupados, para uma possível – e provável – presidência de Alberto Fernández.
A estratégia de Fernández para manter a vantagem eleitoral e encaminhar a vitória nas urnas é, por enquanto, de manter distância e silêncio. O candidato viajou à Espanha e a Portugal, onde conversou com líderes políticos sobre a delicada situação econômica argentina e as relações com o FMI (Fundo Monetário Internacional).
Enquanto Fernández optou pela discrição, Macri já deixou claro que irá fazer de tudo para vencer as eleições. No último mês, o discurso liberal deu lugar a medidas intervencionistas vistas como populistas.
Ao longo do mandato, o atual presidente já havia tomado medidas que vão na contramão do liberalismo. Em especial, ele congelou preços no primeiro semestre de 2019, buscando conter a alta da inflação. A ação, entretanto, não foi efetiva, e o índice de aumento de preços já ultrapassa a marca dos 50% em 12 meses acumulados, com expectativa de que aumente ainda mais por conta da alta do dólar.
No mês seguinte às primárias, o presidente retomou medidas de intervencionismo econômico que marcaram o governo de Cristina Kirchner, deixando de lado alguns dos principais pontos de seu programa de governo antes das primárias.
O primeiro pacote de medidas
Três dias após a derrota nas primárias, Macri anunciou um pacote de medidas que visa a estender benefícios aos trabalhadores, estimular o consumo e controlar a inflação. As principais medidas anunciadas incluem o aumento do salário mínimo, cortes no imposto de renda, incentivos fiscais para pequenas e médias empresas, subsídios para pessoas de baixa renda e congelamento do preço da gasolina por 90 dias.
Essa última medida, entretanto, foi revogada algumas horas depois, diante do protesto de empresas petrolíferas e da falta de acordo da Casa Rosada com o setor. Ainda assim, as medidas foram vistas como desesperadas e populistas. O pacote original tinha um custo previsto de cerca de 40 bilhões de pesos argentinos – algo em torno de US$ 700 milhões.
Os impostos sobre alimentos
Em 15 de agosto de 2019, dia seguinte ao anúncio do primeiro pacote de medidas, Macri implementou novas iniciativas de intervenção econômica. O presidente retirou o imposto sobre o consumo (o chamado IVA, imposto sobre valor agregado) dos principais alimentos da cesta básica dos argentinos.
A decisão veio cerca de 24 horas após a revogação do congelamento do preço da gasolina e zerou os impostos sobre produtos como pão, leite, arroz, açúcar, erva mate, azeite e massas. A medida é válida até o final do ano de 2019.
A renegociação com o FMI
Em junho de 2018, a Argentina recorreu ao FMI, contraindo um empréstimo da ordem de US$ 50 bilhões para controlar a situação do câmbio e da dívida pública do país. Em setembro daquele mesmo ano, o valor foi ampliado para US$ 57 bilhões.
A contrapartida do empréstimo era a adoção de medidas de controle de gastos e austeridade do governo, com estabelecimento de metas fiscais.
No dia 28 de agosto de 2019, o país anunciou a renegociação do prazo da dívida com o FMI, contrariando o discurso inicial de Macri de que não iria rever os termos do empréstimo.
Cerca de 70% da dívida pública argentina está denominada em dólares, o que significa que a desvalorização do peso em relação à moeda americana encarece esse valor e o torna mais difícil de pagar. Diante da trajetória do câmbio e da impossibilidade de manter o cronograma de pagamentos, a escolha de Macri foi renegociar com o FMI.
A reestruturação da dívida será discutida com o órgão internacional até o final do ano e deve ser completada somente sob o próximo governo, que toma posse no dia 10 de dezembro de 2019. Os principais afetados serão, a princípio, credores que são pessoas jurídicas, como bancos e seguradoras.
No dia seguinte ao anúncio do governo, a agência de risco Standard and Poor’s rebaixou a nota da Argentina de B- para SD, classificando a situação do país como um “default seletivo”. A S&P afirmou que a decisão unilateral de adiar pagamentos de curto prazo é suficiente para configurar um default. Um dia depois, a agência elevou a nota do país para CCC-.
A intervenção no câmbio
Quando assumiu a Casa Rosada, em dezembro de 2015, a primeira medida de Macri foi liberar o mercado de câmbio. No governo anterior, de Cristina Kirchner, o câmbio era mantido sob regime de restrição e controle.
Em 1º setembro de 2019, porém, o presidente anunciou a volta do controle cambial, com estabelecimento de limites de compra de dólares e alteração dos parâmetros de conversão de dólar em pesos para exportadores argentinos.
O plano de governo de Macri para as eleições presidenciais afirmava que o regime de câmbio não seria alterado, mesmo com a alta histórica do dólar na Argentina. O próprio presidente lamentou a medida de restrição, dizendo que a decisão só foi tomada por se tratar de uma “situação de emergência”.
O controle do câmbio foi adotado sob a justificativa de minimizar os danos causados pela inflação e pelo câmbio sobre a população argentina, sobretudo os mais pobres. O gesto foi compreendido pelo mercado como uma derrota para Macri, que, novamente, rendeu-se ao intervencionismo e abandonou uma das âncoras liberais de sua política econômica.
O estado da corrida eleitoral
Um mês após a vitória contundente de Alberto Fernández nas primárias, as pesquisas apontam que a distância entre os dois principais candidatos foi ampliada, mesmo com as medidas econômicas tomadas por Macri. Segundo as últimas pesquisas, Fernández tem 55,1% das intenções de voto, enquanto Macri tem 32,5%.
Se a distância for mantida, a tendência é de que a eleição seja resolvida no primeiro turno, no dia 27 de outubro. Na Argentina, um candidato é declarado vitorioso em primeiro turno se tiver pelo menos 45% dos votos ou se tiver mais de 40% de apoio e distância de mais de 10 pontos percentuais para o segundo colocado.
As pesquisas apontam também que a maioria dos argentinos acredita que Macri é o culpado pela crise econômica. Cerca de 15% das pessoas dizem que a responsabilidade é do candidato opositor, Alberto Fernández.
Uma pesquisa publicada pelo jornal argentino El Cronista revelou que 76% dos moradores do país sentiram pouco ou nada os efeitos das medidas econômicas de Macri após as primárias. Apenas 24% diziam ter sido bastante ou muito afetados. A mesma pesquisa mostra que mais de 70% da população argentina acredita que a situação do país não está mais sob controle do presidente. Um número similar acredita que Alberto Fernández vencerá as eleições e será o próximo presidente.
De acordo com o El Cronista, a gestão Macri já não vê como realista uma possível reeleição. A ideia agora é administrar a situação para evitar o agravamento da crise até dezembro, quando ocorre a transição presidencial.
As semanas seguintes às primárias também foram marcadas por manifestações nas ruas de Buenos Aires. No dia 25 de agosto de 2019, milhares de pessoas foram à Praça de Maio – icônico local de protestos, em frente à Casa Rosada – para manifestar apoio a Macri. Aos gritos de “vamos virar”, o presidente apareceu na sacada do palácio e disse que a vitória nas urnas era possível.
Alguns dias depois, em 4 de setembro, a Avenida 9 de Julho – maior via de Buenos Aires – foi tomada por manifestantes contrários ao governo Macri. O protesto caminhou até o Congresso, cobrando soluções para os problemas causados pela crise econômica argentina.