Realizada entre 23 de janeiro e 3 de fevereiro, a edição de 2019 do Festival Internacional de Cinema de Roterdã traz, entre seus programas especiais, a mostra “Soul in The Eye”, uma homenagem ao brasileiro Zózimo Bulbul (1937-2013).
O título da programação faz referência ao curta-metragem “Alma no Olho”, escrito, dirigido e estrelado por Bulbul em 1973, que se tornou um dos pilares do cinema negro brasileiro.
A estreia de Bulbul como cineasta foi inspirada no livro de memórias do Pantera Negra Eldridge Cleaver, “Soul on Ice”, e dedicado ao jazzista John Coltrane.
“No filme, Zózimo, que é o ator, diretor, produtor e montador, foi pioneiro ao mostrar em 11 minutos as vicissitudes da identidade de um negro em ascensão social, inventando nesse transe de cinema uma linguagem e uma possibilidade estética para o que ele vai defender depois na ideia de um movimento de cinema negro no Brasil. Para mim, ‘Alma no olho’ é uma bússola para o nosso fazer cinematográfico que deve ser olhado e revisitado diversas vezes, principalmente pelos futuros e presentes cineastas negros”
Nascido Jorge da Silva no Rio de Janeiro, Zózimo Bulbul iniciou sua carreira em produções teatrais do Centro Popular de Cultura da UNE, a União Nacional dos Estudantes, nos anos 1960. No fim da mesma década, tornou-se o primeiro protagonista negro da televisão brasileira na novela “Vidas em Conflito”, da TV Excelsior.
Nos anos 1970, iniciou sua carreira como diretor, roteirista e produtor e realizou outros sete curtas-metragens e um longa, o documentário “Abolição” (1988), que comemora o centenário do fim da escravidão no Brasil.
Espaços para o cinema negro
Em paralelo a seu trabalho artístico, Bulbul atuou continuamente como ativista do Pan-africanismo (movimento global que tem como um de seus propósitos estreitar laços de solidariedade entre descendentes africanos de todo o mundo), lutando também contra o apagamento das culturas africanas e afrodescendentes no cinema e na televisão brasileira.
Nesse âmbito, foi fundador de espaços de exibição de grande importância para o cinema negro: o Centro Afro Carioca de Cinema, em funcionamento desde 2007, e, no mesmo ano, do Encontro de Cinema Negro - Brasil, África e Caribe, que segue sendo o maior festival de cinema negro da América Latina.
Bulbul estabeleceu ainda uma parceria com o Festival Pan-africano de Cinema e Televisão de Ouagadougou, em Burkina Faso, por meio da qual conectou cineastas e cinemas negros de todo o mundo.
A criação de espaços de exibição próprios é especialmente importante para a sobrevivência do cinema negro.
Em entrevista ao Nexo em agosto de 2018, a respeito do filme “Café com Canela”, o crítico de cinema Juliano Gomes falou sobre as dificuldades enfrentadas por realizadores e outros profissionais negros do cinema de terem uma carreira contínua e filmes exibidos em circuito comercial. Em 2018, ele havia sido o primeiro longa nacional de ficção com uma mulher negra na direção a entrar em cartaz em 34 anos.
A nova geração
O programa “Soul in the Eye” já é o terceiro exibido pelo Festival de Roterdã, desde 2017, na temática do cinema pan-africano.
O primeiro, intitulado “Black Rebels”, exibiu filmes sobre pessoas negras e feitos por diretores predominantemente negros de diferentes nacionalidades, que tratam do enfrentamento ao racismo e de barreiras culturais. Em 2018, o festival apresentou o programa “Pan-African Cinema Today”, dedicado a resgatar a história do Pan-africanismo através do cinema.
Entre eles, “Temporada” (2018), segundo longa-metragem do mineiro André Novais Oliveira, “Ilha” (2018), longa de Glenda Nicácio e Ary Rosa – diretores de “Café com Canela”, premiado pelo festival em 2018 –, além de exibir um panorama de mais de 20 curtas-metragens produzidos entre 2014 e 2019.
Nas sessões, os curtas foram agrupados por temática. Cada compilação é precedida, nas exibições, por uma obra de Bulbul e lida com um aspecto histórico da negritude brasileira.
“O que a gente encontra em comum nos filmes desta nova geração de cineastas é falar sobre o cotidiano do negro no Brasil, afastar-se, na medida do possível, da militância explícita. É uma tentativa de normatizar a presença do corpo do negro na sociedade”
Além da importância do legado de Bulbul, a nova geração do cinema negro brasileiro também se relaciona com a implantação de políticas afirmativas nas universidades a partir de 2003, o que ampliou o acesso da população negra ao ensino superior, e com a criação de novas escolas de cinema, sobretudo nas universidades federais, fora do eixo Rio-São Paulo.