‘O Antropoceno e as humanidades’: a era moldada pela espécie


O ‘Nexo’ publica um trecho de ‘O Antropoceno e as humanidades’, novo livro de José Eli da Veiga. Na obra, o autor investiga como estudos biológicos e sociológicos dialogam sobre a evolução da espécie humana

Não poderia ser maior o contraste entre as obras de Joseph Henrich e do economista Robert H. Frank, professor de Cornell e colunista do New York Times. Muitos economistas brasileiros usaram algum de seus livros, particularmente dois manuais pedagógicos, traduzidos pela editora McGraw Hill. Ambos em coautoria com Ben Bernanke, ex-presidente do Fed laureado com o Nobel de Economia em 2022, que também foi editor da American Economic Review e chefe do departamento de economia de Princeton.

Porém, a maioria dos fãs de Frank é formada pelos que leram traduções de algumas de suas obras mais populares. E com linguagem bem menos hermética, se servem da nova “economia comportamental” para tratar de assuntos do tipo “enigmas do dia a dia”, “mérito”, “sucesso” e até “sorte”.

Raros são, contudo, leitores que tenham tomado conhecimento de sua mais curiosa proposta: transferir a Charles Darwin (1809-1882) a láurea de pai da ciência, derrubando do pedestal o filósofo escocês Adam Smith (1723-1790). Ele aposta que isto acabará por acontecer, mesmo que só daqui a um século.

Pode até parecer desafiante chacota, mas séria defesa de tal tese ocupa as 257 páginas de um dos quinze livros de Robert Frank. O título deveria ter sido Darwin’s Wedge (A cunha de Darwin), mas o grande risco de suscitar piada com “wedgie” (cuecão) levou à troca por The Darwin Economy (Princeton, 2011).

O argumento salienta o choque entre as visões dos dois pensadores sobre a dinâmica competitiva. Segundo Frank, aquele tão benéfico efeito da “mão invisível”, metaforizado por Smith, não passaria, na concepção darwiniana, de caso excepcional. Nesta — sempre segundo Frank — o interesse individual seria ordinariamente contrário ao coletivo.

Dois aspectos são espantosos. Primeiro, que, além da competição, nenhuma outra ideia de Darwin tenha merecido destaque. Segundo, que tenham sido solenemente ignoradas as reflexões dos muitos economistas que — ao menos desde Thorstein Veblen (1857-1929) — vêm revelando conexões bem mais robustas entre o materialismo darwiniano e as análises sociais. Úteis amostras estão nos vídeos do “Ciclo sobre a Teoria Darwiniana”, realizado em 2022 e na edição 63 (2008) da revista Estudos Avançados, ambos do IEA-USP.

Bem pior, entretanto, é a consequência da operação. Pois a gracinha de Frank só ajuda a ampliar e reforçar a vulgata de um Darwin obcecado pela competição. Inferência até compreensível, se restrita à primeira metade de sua contribuição, exposta no célebre A origem das espécies, de 1859 (Clássica, 2021; Edipro, 2018; Ubu, 2018).

O problema é que a teoria darwiniana não pode ser razoavelmente entendida sem conhecimento de sua segunda metade, que precisou de mais onze anos para chegar às livrarias, com o título The Descent of Man. Inicialmente mal traduzido por A origem do homem, mas já corrigido, ao menos em francês, por La Filiation de l’homme (Éditions Slatkine, 2012).

Não há dúvida de que a esplêndida conjectura sobre uma impiedosa “seleção natural”, eliminadora de grande parte dos menos aptos, é válida para todas as espécies, inclusive a humana. Mas se mostrou insuficiente demais para explicar o excepcional e recente processo civilizador. Para interpretá-lo, tornou-se obrigatório enfrentar a intrincada relação entre competição e cooperação.

Claro, hoje se sabe que também há imensa cooperação fora da espécie humana. As pesquisas biológicas cada vez mais revelam o papel central desempenhado, em toda a história da vida, por sinergias decorrentes de dinâmicas colaborativas. Na exata contramão do que supõe a doutrina “gene egoísta”.

A despeito da longa e feroz resistência às descobertas de Lynn Margulis, hoje está reconhecida a relevância da simbiogênese, que realça os efeitos positivos de inter-relações entre indivíduos, sem negar as vantagens reprodutivas dos mais adaptáveis. A rigor, nem a vida teria surgido sem muita cooperação.

Porém, como as bactérias e os genes só despertaram o interesse dos cientistas entre o fim do século XIX e início do XX, Darwin não poderia ter sequer cogitado algo parecido. Só notou a magnitude da cooperação ao estudar a evolução humana.

Três afirmações conclusivas da obra, que já assoprou suas 150 velinhas, realçam o quanto a história da espécie humana levou-o muito além da teoria exposta em A origem das espécies: 1) no que diz respeito à natureza humana, outros fatores superaram a “luta pela existência”, por mais que ela tenha sido importante e ainda o seja; 2) as qualidades morais avançaram muito mais devido às consequências dos hábitos, dos poderes do raciocínio, da instrução, da religião etc., do que de “efeitos da seleção natural”; 3) foram instintos sociais que proporcionaram o desenvolvimento moral.

Também, não deixa de ser interessante notar que o termo “competição”, usado 44 vezes no primeiro grande livro, só teve catorze menções no segundo. Pois toda a ênfase de Darwin migrou para os “instintos sociais”, que geraram fenômenos como a ajuda mútua e a ética.

As muitas formas de cooperação — quase ausentes do primeiro grande livro — adquiriram importância central no segundo. Sem elas, nem seria possível entender por que boas coesões sociais superaram inúmeras guerras. As tribos vencedoras, que foram vingando, tinham mais solidariedade e virtudes morais.

capa: O Antropoceno e as Humanidades

O Antropoceno e as humanidades

José Eli da Veiga

Editora 34

208 páginas

Lançamento em 17 de abril

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