A percepção crítica de mundo de mulheres negras é fundamental para entender a sociedade em que vivemos. Mesmo assim, a produção de conhecimento social no Brasil ainda ignora largamente o que é feito por pensadoras desse grupo e, como consequência, continua gerando teorias enviesadas e limitadas para dar conta da realidade brasileira. Ao escrever “Um pé na cozinha”, minha tese em sociologia que se tornou livro, sabia que era (como ainda é) raro poder realizar um trabalho de doutorado na área baseado majoritariamente em referências bibliográficas femininas e negras. No entanto, foi o pensamento social e crítico produzido por mulheres negras que ofereceu um olhar sensível sobre as particularidades das trabalhadoras negras: suas condições de vida, ações estratégicas e interpretações de mundo a partir de lugares como a cozinha – perspectivas fundamentais para entender o funcionamento do tecido social brasileiro.
A produção de conhecimento por mulheres negras não tem caráter marginal. Ela versa sobre a sociedade como um todo e, nesse sentido, é incontornável para pensar e transformar o mundo que habitamos. As cinco obras abaixo representam apenas uma pequena parcela da vastidão da produção de pensamento social e crítico de mulheres negras – e como se estende a diversas áreas de conhecimento e formatos de publicação.
Diário de Bitita
Carolina Maria de Jesus (SESI-SP, 2014)
Carolina Maria de Jesus entregou estes manuscritos a duas jornalistas em 1975. Morta dois anos depois, a escritora não viu seu livro ser publicado – primeiro na França, em 1982, depois no Brasil, em 1986. A obra revela as memórias de Carolina desde seu nascimento, em 1914, até sua partida para São Paulo, em 1937, e é um registro fundamental da vida da população negra em pequenas cidades no pós-abolição. Em 21 capítulos, a autora narra curtos episódios do dia a dia que nos permitem acessar o cotidiano de trabalho exaustivo e miseravelmente remunerado de mulheres e homens negros, as diversas formas de impedimento de seu acesso à educação e a condições dignas de trabalho e o caráter sistemático da violência contra eles. A construção da narrativa evidencia o olhar crítico de Carolina, enquanto mulher negra e pobre, sobre a manutenção da brutalidade das hierarquias raciais e de gênero do período.
Uma história feita por mãos negras
Beatriz Nascimento (Zahar, 2021)
Organizado por Alex Ratts, o livro é uma coletânea de artigos, resenhas e ensaios da historiadora, poeta e militante sergipana Beatriz Nascimento. Selecionados de seu acervo no Arquivo Nacional e de publicações diversas, os textos compreendem a produção da obra da autora no período entre 1974 e 1991, e revelam a profundidade de seu olhar crítico sobre o funcionamento do racismo antinegritude no Brasil, bem como a postura vanguardista de sua ação disruptiva nos ambientes acadêmicos da época. Extremamente rigorosa em sua pesquisa, Beatriz propunha importantes mudanças epistemológicas para a construção de uma história brasileira que considerasse a experiência e a agência de mulheres e homens negros como fundamental para entender e transformar o país. Além disso, sua produção revela como o pensamento de mulheres negras ousa articular subjetividade e objetividade para refletir sobre o mundo em que vivem.
Pensamento feminista negro
Patricia Hill Collins (Boitempo, 2019)
Publicada originalmente na década de 1990, a obra é referência fundamental para compreender a amplitude do pensamento social e crítico de mulheres negras nos Estados Unidos. A partir da análise de discursos políticos, escritos literários, registros musicais e orais, além de textos acadêmicos, a socióloga afro-americana Patricia Hill Collins constrói um panorama do olhar de pensadoras negras sobre a articulação da desigualdade de gênero e de raça na formação e no funcionamento da sociedade estadunidense. A leitura do livro, articulada à reflexão sobre as condições de vida de mulheres negras no Brasil, permite perceber as aproximações possíveis entre as diferentes experiências e as estratégias perspicazes de mulheres negras na Diáspora. Como afirma a autora, “temos muito a aprender umas com as outras no que diz respeito à maneira como os sistemas interseccionais de raça, classe, gênero e sexualidade se informam mutuamente em nossas respectivas configurações nacionais”.
Daqui eu não saio, daqui ninguém me tira: a luta das mulheres negras pelo direito à terra no Brasil
Keisha-Khan Y. Perry (Edufba, 2022)
Traduzida recentemente para o português, esta obra de 2013 da antropóloga afro-americana e jamaicana Keisha-Khan defende a importância do papel de mulheres negras de movimentos sociais de base popular enquanto líderes e teóricas políticas. Partindo de uma pesquisa cuidadosa e profunda junto à comunidade da Gamboa de Baixo, em Salvador, a autora demonstra como ativistas comunitárias negras desafiam a violência racial da política habitacional urbana e agem estrategicamente junto às suas comunidades para lutar por justiça e pela conquista de direitos. Destacando-se por seu caráter diaspórico e colaborativo, o trabalho de Keisha-Khan se ampara nos fundamentos da própria tradição de pensamento e de ação política que desvela ao longo do livro. É assim que chama a atenção para a continuidade deste legado: “A luta continua, e sem dúvida a luta continuará com a participação e liderança de mulheres negras, conforme elas lutam contra a injustiça e pelo direito de viver com dignidade e liberdade”.
Intelectuais negras brasileiras: horizontes políticos
Ana Claudia Jaquetto Pereira (Letramento, 2019)
Este livro é uma adaptação da tese de doutorado de Ana Claudia em ciência política, que aborda o pensamento social e político produzido por militantes do movimento de mulheres negras no Brasil da década de 1970 até 2015. Partindo da análise de entrevistas e textos escritos por ativistas negras, a autora expõe a tradição intelectual e de intervenção social e política construída por esse grupo de mulheres, que refletem e agem no combate às desigualdades interseccionais de raça, gênero e classe. É como observa a autora: “(...) o movimento de mulheres negras articula sua resistência não apenas como oposição, mas como possibilidade criativa de autorrepresentação e autodefinição, em projetos que buscam fazer ressoar o eco a vida-liberdade”.
Taís de Sant’Anna Machado é pesquisadora no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília, foi pesquisadora visitante na Brown University, nos Estados Unidos. É escritora, poeta e autora do livro “Um pé na cozinha: um olhar sócio-histórico para o trabalho de cozinheiras negras no Brasil” (Fósforo Editora, 2022).