Em meio aos anos de chumbo da ditadura militar, a década de 1970 foi única para a cultura brasileira. Na literatura (descobri quando estudei João Antônio na faculdade) havia toda uma geração de escritores e, mais especificamente, de contistas, que se dedicavam a personagens urbanos e às formas breves sem se preocupar com preferências do mercado – que ainda hoje torce o nariz para os contos. Muitos dos autores que surgiram naqueles anos caíram hoje em relativo esquecimento, outros, como Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna, tiveram mais sorte. Boa parte deles foi fundamental para me formar como leitor e escritor. O Brasil, que se esmera tanto em esquecer, deveria lembrá-los – tanto os esquecidos quanto os que perduraram. Eles são mestres da linguagem direta, da economia de palavras, dos diálogos certeiros e das histórias de cunho social, mas também psicológico. Listo abaixo cinco livros (alguns publicados na década de 1960) que me marcaram desse boom de contistas dos anos 1970.
Malagueta, Perus e Bacanaço
João Antônio (Editora 34, 2020)
Sobre esse livro, que rendeu ao autor dois Prêmios Jabuti – de melhor livro de contos e melhor autor estreante –, Antonio Candido escreveu: “João Antônio faz para as esferas malditas da sociedade urbana o que Guimarães Rosa fez para o mundo do sertão, isto é, elabora uma linguagem que parece brotar espontaneamente do meio em que é usada, mas na verdade se torna língua geral dos homens, por ser fruto de uma estilização eficiente”. As histórias do livro, com personagens quase sempre em movimento, passeiam pela São Paulo da década de 1960. E o conto principal, homônimo do livro, é uma obra-prima que compõe o retrato da cidade e suas margens ao relatar a noite de três malandros em busca da glória em tristes bares e salões de sinuca.
Tarde da noite
Luiz Vilela (Ática, 1988)
Os 25 textos que compõem esse livro são um primor do ponto de vista da forma, o conto em sua essência: histórias que dão a impressão de terem começado muito antes das narrativas e que sugerem continuações para além de seus pontos finais. O menino que recorda o suicídio do avô com quem conversava sem dizer uma palavra; o estudante que viu o diretor molestar um colega; o homem que espera o ônibus enquanto conversa com uma menina que vai à rodoviária esperar o irmão que já morreu. Todos os textos – em especial os contos-diálogos, tão característicos da produção daquele período – são precisos ao colocar em evidência os não-ditos que permeiam a vida de personagens que, em sua maioria, vivenciam e reproduzem a aspereza e falta de comunicação do universo masculino.
Antes do baile verde
Lygia Fagundes Telles (Companhia das Letras, 2009)
Lygia Fagundes Telles já tinha uma extensa carreira na literatura quando publicou este livro. Contudo, a coletânea, composta por 18 textos, representou um marco na obra da escritora, que depois publicaria clássicos como “As meninas”, “Seminário dos ratos” e “A estrutura da bolha de sabão”. Sobre os contos de “Antes do baile verde” – entre críticas elogiosas de intelectuais como Antonio Candido e Paulo Rónai – foi de Silviano Santiago o melhor comentário: “uma definição curta e sucinta dos contos de Telles dirá que a característica mais saliente deles é a dificuldade que têm os seres humanos de estabelecer laços”. Nos textos, a escritora apresenta a vida da classe média urbana e seus dilemas psicológicos ao mesmo tempo em que desnuda conflitos sociais brasileiros.
Feliz ano novo
Rubem Fonseca (Nova Fronteira, 2021)
Golpista e apoiador de primeira hora da ditadura civil militar brasileira, o senador Dinarte Mariz foi aos jornais escandalizado: “Suspender “Feliz ano novo” foi pouco. Quem escreveu aquilo deveria estar na cadeia e quem lhe deu guarida também. Não consegui ler nem uma página. Bastaram meia dúzia de palavras. É uma coisa tão baixa que o público nem devia tomar conhecimento”. O incômodo de gente como Mariz já seria motivo suficiente para indicar este livro: enquanto militares e seus asseclas escreviam artigos contra a prosa de Fonseca, havia gente sendo estuprada e eletrocutada nos paus de arara de porões oficiais. É por isso, mas também por ser único na forma que escancara a violência social e a hipocrisia dos bons costumes no Brasil, que “Feliz ano novo” precisa continuar a ser lido.
A mãe e o filho da mãe
Wander Piroli (SESI-SP, 2016)
Em algum momento da vida, Wander Piroli foi chamado de o Hemingway brasileiro. Havia dois motivos para o apelido. Um eram suas narrativas curtas e secas, sem adjetivos, sem refrescos. Outro foi seu jeito simples de viver: gostava de cachaça, cigarro e pescaria. Costumava dizer, aliás, que pescar era muito melhor do que escrever. Piroli ficou mais conhecido por “O menino e o pinto do menino”, “Os rios morrem de sede” e “O matador”, primeiros e verdadeiros best sellers infantis brasileiros. “A mãe e o filho da mãe”, contudo, é uma pequena obra-prima esquecida, que retrata o cotidiano urbano marcado por uma tensão que só cresce junto às desigualdades de classe.
André de Oliveira é jornalista, trabalhou no jornal espanhol El País, no suplemento dominical Aliás, de O Estado de S. Paulo, e também passou pelas revistas Brasileiros e Carta Capital. Em 2020 e 2021, foi assistente de direção da Festa Literária Internacional de Paraty. Ele acaba de lançar o livro de contos “Lusco-fusco”, pela editora Urutau.
ESTAVA ERRADO: A versão anterior de um subtítulo deste texto dizia que a autora de “Antes do baile verde” era Rita Lee. Na verdade, quem escreveu o livro foi Lygia Fagundes Telles. A informação foi corrigida às 7h50 do dia 9 de maio de 2021.