“Hoje sou funcionário público e este não é meu desconsolo maior” poderia ser uma breve nota bibliográfica minha, mas é a abertura de um dos mais conhecidos contos de Murilo Rubião – ele também servidor estadual. E, assim como o autor mineiro, também me fascino com o potencial das engrenagens burocráticas enquanto matéria-prima de criações artísticas, sobretudo literárias.
Deixando Kafka de lado, que esse todo mundo já conhece, pensei em cinco sugestões de livros que lidam com a administração pública, funcionários de gabinete, profissões formalistas, ofícios sistematizados, hierarquia de cargos, estrutura organizacional rígida e comportamentos previsíveis (alguns nem tanto). Tudo para conhecer melhor alguns dos absurdos que somente a extrema racionalidade poderia parir.
A lista abaixo traz apenas livros que tratam integralmente de funcionários públicos e da vida burocrática. Mas aproveito também para recomendar contos brasileiros avulsos que tratam ou conversam com o assunto: “Seminário dos ratos” (Lygia Fagundes Telles), “O arquivo” (Victor Giudice), “Os diamantes chegaram” (Luis Fernando Veríssimo), “Aqueles dois” (Caio Fernando Abreu), “Aí pelas três da tarde” (Raduan Nassar), “O despertar de Gregório Barata” (Sérgio Sant’Anna) e “Deus não vai se incomodar” (Gustavo Pacheco).
Bartleby, o escrivão
Herman Melville (Trad. Irene Hirsch, Ubu, 2017)
Erra quem pensa que só a administração pública tem sua burocracia. Nesta breve novela do autor de “Moby Dick”, somos apresentados a um escritório de advocacia particular eivado dos mesmos vícios que o almoxarifado mais representativo do ministério mais clichê do Estado mais burocrático já imaginado. Aqui, o insólito se materializa na negativa de Bartleby (um escrivão, escrevente ou escriturário, a depender da tradução) em atender às ordens do advogado que o contratou e a narrativa se desenvolve a partir dessa resistência. “I would prefer not to”, a frase repetida pelo protagonista, se tornaria umas das construções mais célebres da literatura, enquanto Bartleby talvez seja o burocrata mais conhecido da história.
O amanuense Belmiro
Cyro dos Anjos (Globo, 2006)
Na repartição pública, o amanuense é aquele que copia documentos ou, atualmente, digita expedientes. Qual o resultado quando um melancólico copista decide, ao largo das transcrições e reproduções, ele próprio criar uma obra textual? Eis o diário de Belmiro Borba: estéril e profundo, banal e esperançoso, que revela nas costas de um homem solitário dos anos 1930 as expectativas de uma família arruinada, as obrigações da Seção do Fomento Animal do Ministério da Agricultura e as próprias angústias e frustrações.
O conto da vida burocrática
Raymundo Magalhães Júnior (org.) (Civilização Brasileira, 1960)
Integrante da famigerada coleção Panorama do Conto Brasileiro, o volume reúne cerca de 20 contos de autores como Machado de Assis, Lima Barreto, Orígenes Lessa e Graciliano Ramos que se passam em repartições ou têm como protagonistas funcionários públicos.
Personagens como Dr. Freitas, Sr. Barreto, Fifinho e Dona Ermelinda interagem em delegacias, gabinetes e ministérios em textos muitas vezes engraçados e preponderantemente realistas. Apesar de tematicamente relevante, é uma coletânea datada, que escancara uma visão obtusa e nada plural do nosso cânone literário.
Obra completa
Murilo Rubião (Companhia das Letras, 2010)
Talvez exista uma norma escrita que proíba a indicação de obras completas em listas temáticas, mas acho que ninguém vai querer conferi-la no mural de avisos de um guichê mal-assombrado em uma esquina pouco movimentada de um saguão de um consulado de um país que não existe mais. Seja como for, Murilo Rubião merece o privilégio, primeiro por ser autor de obra diminuta: apenas 33 contos, escritos e reescritos, publicados e republicados, inseridos e suprimidos em diversas coletâneas ao longo da sua vida. Depois, por ser exceção ao realismo ontológico dominante no Brasil ao longo do século passado, apresentando, como regra, elementos insólitos que o posicionam ao lado de escritores do realismo mágico e da literatura fantástica. Um dos eixos temáticos mais marcantes de sua obra é justamente o universo
burocrático, em que situações absurdas ocorrem com a naturalidade de uma cartorária que requisita a cópia autenticada com firma reconhecida de um documento que você nunca imaginou que existia. Vale a pena visitar contos como “A fila”, “Memórias do contabilista Pedro Inácio”, “O bom amigo Batista” e “Ex-mágico da taberna minhota”, de onde extraí a frase que abre a nota introdutória.
A gaveta e o abismo
Gabriela Guimarães Gazzinelli (Jabuticaba, 2022)
Esta reunião de textos breves é um dos livros de contos mais interessantes dos últimos anos. De subtítulo “contos de terror e burocracia”, a obra é caso raro de volume dedicado integralmente aos meandros das repartições e aos seus corredores pouco iluminados. Como Gazzinelli é diplomata, aqui a burocracia ganha o tempero das relações internacionais e da vida consular: um curso de demarcação de fronteira, um incidente diplomático entre galináceos franceses e um cão de guarda brasileiro, os coquetéis das embaixadas, uma nova modalidade do direito à nacionalidade. A autora manipula muito bem o registro irônico e, com linguagem que muitas vezes emula aquela empregada nos ofícios mais formais, constrói situações cômicas e absurdas, sem perder a verossimilhança.
Lucas Verzola é funcionário público e este não é seu desconsolo maior. Autor de três livros de contos – o mais recente ”A última cabra” (Reformatório, 2019) –, é fundador e editor da revista Lavoura.