A Petrobras, que completou 70 anos na terça-feira (3), decidiu em 2023 adotar a bandeira da transição energética. A empresa diz querer ampliar suas atividades no mercado de energia para além do petróleo, investindo também em fontes de energia renováveis e descarbonização.
Mas os recursos para financiar essa guinada deverão vir justamente da exploração de petróleo, que a empresa pretende, aliás, ampliar. É o que disse ao Nexo Mauricio Tolmasquim, diretor de Transição Energética e Sustentabilidade da Petrobras — área criada em 2023.
A Petrobras tem mirado a exploração em uma área do litoral brasileiro conhecida como margem equatorial, faixa costeira no norte da América do Sul — no Brasil ela vai do Amapá ao Rio Grande do Norte.
Em especial, a empresa e diferentes partes do governo vêm pressionando pela liberação da exploração na foz do rio Amazonas, a 60 km da costa do Amapá. O projeto é criticado por ambientalistas e pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que apontam riscos ambientais relevantes.
A negativa do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) em maio não impediu uma escalada da pressão pela perfuração. Tolmasquim garante que a empresa fará “o que o órgão ambiental decidir”.
O diretor da Petrobras falou ao Nexo sobre as perspectivas da empresa para a transição energética e como o petróleo se insere nos planos. Leia abaixo.
Qual o significado do fato de que a Petrobras passou a ter a partir de 2023 uma diretoria de transição energética? O que isso simboliza? A empresa chegou atrasada nessa decisão?
Mauricio Tolmasquim A decisão de criar uma diretoria de transição energética é importantíssima. Ela significa uma guinada na empresa, de uma visão que estava sendo muito curto-prazista, para uma visão mais de longo prazo. Não estou dizendo que uma é certa e a outra errada. São dois modos de ver. Você pode pensar que quer só no curto prazo obter o maior lucro, e não pensar na perenidade da empresa. Outra visão, que é a que estamos adotando, é a de construir uma Petrobras para viver mais 140 anos, não apenas no hoje.
Vamos fazer um investimento em atividades que são portadoras desse futuro. Atividades que permitam construir esse futuro. Esse é o grande significado da criação dessa diretoria. Agora estamos com essa função de olhar, claro, para a rentabilidade hoje da empresa, mas construindo ao mesmo tempo o futuro dela.
A Petrobras foi, durante a imensa maioria dos 70 anos de sua história, uma empresa de petróleo. O que significa, na prática, transformá-la numa empresa de energia?
Mauricio Tolmasquim A gente hoje foca na venda do combustível fóssil, derivados de petróleo. A ideia é diversificar essa produção para outras formas de energia. Petróleo e gás são formas de energia, mas existem várias outras. A gente quer diversificar para essas outras — energia elétrica a partir de [geração] eólica e solar, a molécula verde que é o hidrogênio, biocombustíveis para o setor da aviação...
Você passa a diversificar os seus produtos e os seus energéticos. Em vez de ser uma empresa de petróleo que comercializa apenas derivados de petróleo e gás, comercializar também outros produtos energéticos.
Mas sem deixar o petróleo em segundo plano, certo?
Mauricio Tolmasquim O petróleo vai ser, é o carro-chefe da Petrobras. Ainda durante algum tempo, o petróleo vai ser o que vai permitir à empresa se financiar. É do petróleo que vem os grandes resultados da empresa. É isso que permite, inclusive, o investimento em baixo carbono e renováveis.
E como a Petrobras produz um petróleo com baixo nível de carbono, comparativamente a outras empresas, e é um petróleo bastante competitivo, a gente tem condições de manter a produção durante um longo tempo. O que não significa que a gente não tenha que diversificar.
Porque conforme os países vão tendo sucesso nas políticas de descarbonização, a demanda mundial por petróleo vai reduzir. Então a gente vai ter um espaço nesse mundo, mas um espaço em que vai ter um número grande de ofertantes para uma demanda cada vez menor. Então é claro que precisamos ter outras atividades além do petróleo.
Mas o petróleo vai continuar sendo nosso carro-chefe.
Se a demanda vai ser cada vez menor — algo que a própria Agência Internacional de Energia tem apontado —, manter o petróleo como carro-chefe não gera riscos de que a Petrobras produza petróleo mas não tenha para quem vender?
Mauricio Tolmasquim A Agência considera, no cenário de Paris [do Acordo de Paris, de 2015], uma redução da demanda em cerca de 40%. Hoje temos uma demanda de petróleo de cerca de 100 milhões de barris [por dia]. Então chegaríamos em 2050 com uma demanda de cerca de 60 milhões de barris. Vai ser uma demanda menor, mas ainda assim vai ter 60 milhões de barris de demanda.
É claro que existe a possibilidade de o preço cair, porque a demanda vai ser menor — e não sei como vai estar a oferta. Mas a gente está bem colocado para disputar parte dessa demanda. Porque nosso petróleo é muito competitivo e emite menos. Então, no futuro, consumir o petróleo da Petrobras vai ser quase um mecanismo de diminuir as emissões.
A gente tem que andar nessas duas direções. Investir em petróleo, porque o mundo, mesmo com menos conteúdo de carbono, ainda vai precisar de petróleo — e a gente tem condição de fornecer parte desse petróleo. Mas, ao mesmo tempo, tendo ciência de que é importante diversificar porque essa demanda vai ser menor.
Não parece contraditório financiar a transição energética justamente via petróleo?
Mauricio Tolmasquim O mundo tem o desafio de cada vez mais reduzir a dependência do petróleo. Isso é fundamental, e vamos caminhar para isso. Agora, isso é um processo. E esse processo leva um tempo. Alguém vai ter que produzir o petróleo enquanto você faz essa transição. A palavra transição não é à toa.
Durante esse tempo, nós [a Petrobras] temos a condição de atender o que o mundo precisa, com um petróleo de baixo conteúdo de carbono. Não tem porque não fazer, se existe essa demanda. A demanda é um fato, existe porque você não consegue transformar tudo ao mesmo tempo.
Agora, uma vez que vai fazer [atender essa demanda], vira um cenário em que é razoável que uma parte dessa renda petrolífera vá para tentar acelerar ainda mais a transição.
Você pode até falar que estamos botando dinheiro em algo que vai reduzir a demanda do nosso próprio produto. Por que uma empresa petrolífera vai botar dinheiro em algo que vai diminuir o mercado dela? Eu acho que tem lógica.
Primeiro porque a demanda de petróleo vai cair ao longo do tempo, então precisamos nos preparar para esse futuro. E segundo porque é uma demanda atual, não só da sociedade, mas até concreta. As instituições de financiamento cada vez mais fazem exigências de que, para obter um crédito, você descarbonize suas operações e diversifique seus produtos para produtos renováveis. Da mesma forma, muitos investidores e fundos de pensão — nos EUA, Canadá e outros países — têm regras de investir em apenas em empresas que estejam fazendo esforço de descarbonização.
Às vezes alguns acionistas [da Petrobras] falam: "por que você está colocando tanto dinheiro em transição energética? Faz petróleo, que é mais rentável". Mas acho que tem uma lógica, tanto de curto como de longo prazo, de a gente seguir esse caminho [da transição].
Quais as principais medidas que têm sido tomadas no sentido da transição?
Mauricio Tolmasquim A Petrobras mantém uma tradição que vem de antes, que é de investir em descarbonizar seus próprios processos. E estamos agora analisando projetos — em parcerias com diversas empresas, principalmente — nas áreas de eólica, de solar, de hidrogênio, de captura de carbono. Já estamos fazendo investimentos em biocombustíveis.
Na área de transporte, a gente está olhando para o coprocessamento [produção de combustíveis usando produtos fósseis junto com óleos vegetais]. Na área de combustíveis de aviação, a gente vai ter uma unidade na RPVC [Refinaria Presidente Bernardes], lá em Cubatão, que vai funcionar com óleo vegetal, e que vai produzir combustível para aviação (ainda numa escala menor, mas vai). E na área de petroquímica, a gente está olhando também para produtos verdes, para usar óleos vegetais para fazer matéria prima para plásticos — produtos que geralmente são produzidos com petróleo.
Então a gente está olhando para várias oportunidades.
Quais os principais desafios de conduzir a transição energética dentro da Petrobras? A empresa tem a tecnologia necessária à disposição? Tem a mão de obra especializada? Tem os recursos para fazer os investimentos?
Mauricio Tolmasquim A Petrobras está muito bem posicionada para liderar a transição no Brasil. Primeiro porque primeiro nós temos o nosso Cenpes, que é o nosso centro de pesquisas para América Latina. Por exemplo, na área de coprocessamento, essa produção de combustíveis para aviação, isso é tudo oriundo de patentes do Cenpes. A parte de captura, de armazenamento de gás carbônico, tudo isso são temas desenvolvidos pelo nosso centro de pesquisa. A nossa geração de tecnologia ajuda.
Ao mesmo tempo, tem várias tecnologias que têm a ver com a atividade da Petrobras. Para botar na refinaria petróleo junto com óleo vegetal, você tem que adaptar a unidade de refino para isso. São atividades que a gente faz comumente.
Também as eólicas offshore e toda a atividade de exploração de petróleo offfshore... Temos a capacitação e os recursos humanos para trabalhar no mar, com equipamentos e logística. Temos uma vantagem comparativa nessa área, enquanto outras grandes petroleiras estão olhando para o mar na transição energética.
E na área de hidrogênio verde, que é um grande potencial que vejo, a Petrobras é hoje a maior produtora de hidrogênio a partir do gás natural, que é o hidrogênio cinza. A gente deixar de produzir uma molécula de hidrogênio cinza para produzir a verde é algo que é possível, que está no nosso DNA, tem tudo a ver com a atividade da Petrobras.
Então não tenho dúvida de que a Petrobras tem as condições técnicas, humanas e de conhecimento para fazer uma transição energética eficiente e rentável.
O senhor falou na exploração de petróleo offshore, que a Petrobras vem tentando ampliar especialmente na margem equatorial. A exploração de petróleo na Foz do Amazonas — que gerou um grande debate sobre riscos ambientais — é compatível com os objetivos de transição energética da Petrobras?
Mauricio Tolmasquim Não vou falar especificamente de um projeto A ou B. Mas as reservas da Petrobras estão caindo. A gente precisa aumentar, é preciso haver novas descobertas. Senão a gente não vai nem conseguir atender aquela parte do petróleo que o mundo vai precisar ao longo do tempo, e que o Brasil vai precisar também. Mesmo descarbonizando, você vai precisar de petróleo.
Onde vai ser essa exploração? Vai ser onde o órgão ambiental autorizar. Vamos explorar onde for autorizado.
A Foz do Amazonas é um nome que é dado, mas na realidade ela está a muitos quilômetros realmente da foz do Amazonas. Aquela região toda, aquela parte da margem Equatorial é chamada de foz do Amazonas. Mas a foz mesmo, do ponto de vista geográfico, está distante de onde vai ser a exploração.
A Petrobras está tentando atender todas as demandas solicitadas pelo órgão ambiental, no sentido de mostrar que essa atividade pode ser feita com baixíssimo risco. Agora, faremos o que o órgão ambiental decidir. A Petrobras faz o pleito, mas fará o que for decidido, é claro.
E como o senhor enxerga a Petrobras ao final de 2026? O quanto a transição terá caminhado nesses próximos anos?
Mauricio Tolmasquim A área de transição energética vai estar consolidada na empresa [em 2026]. A gente vai ter em carteira projetos renováveis que vamos adquirir. E vamos ter vários investimentos — com uma expansão orgânica — em projetos que ainda vamos desenvolver.
Em 2026, vamos ter projetos que estarão na nossa carteira, parcerias com outras empresas, e ao mesmo tempo teremos uma carteira com projetos em desenvolvimento. Eventualmente pode dar tempo de ter alguma coisa nossa desenvolvida em solar e eólica, apesar de que o prazo de construção ser uma questão.