Às 16h54, o Ministério do Meio Ambiente divulgou uma nota alegando que bloqueios de repasses de R$ 60 milhões da Secretaria de Orçamento Federal ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais, o Ibama, e ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio, inviabilizavam as ações para mitigar os danos ambientais em curso na Amazônia e no Pantanal.
Segundo o órgão, a decisão, referendada pela Secretaria de Governo e a Casa Civil da Presidência da República, somava-se à suposta previsão de corte de R$ 120 milhões na área de meio ambiente no Orçamento de 2021 a ser apresentado na segunda-feira (31).
A pasta comandada por Ricardo Salles anunciou que desmobilizaria brigadistas, fiscais ambientais e veículos como caminhonetes, caminhões, viaturas e helicópteros. Por volta das 18h, no entanto, o vice-presidente Hamilton Mourão, presidente do Conselho da Amazônia Legal, órgão responsável pela coordenação de políticas públicas e repressão a crimes ambientais na região, afirmou que não houvera bloqueio, e que Salles havia se precipitado.
Às 19h54, o Ministério do Meio Ambiente atualizou a nota original, afirmando que os recursos foram desbloqueados e que “as operações prosseguirão normalmente”.
Os desencontros em torno do futuro das ações de combate a danos ambientais ocorrem num momento de alta consistente do desmatamento na Amazônia e dos maiores incêndios desde 2006 no Pantanal.
O Nexo entrevistou Suely Vaz de Araújo, especialista em políticas públicas do Observatório do Clima e presidente do Ibama entre 2016 e 2019, para entender os impactos da descoordenação do governo Bolsonaro na área ambiental.
Qual é o saldo do vaivém sobre o bloqueio de recursos ao Ibama e ao ICMBio?
Suely Vaz de Araújo O acontecimento de sexta-feira não faz sentido e parece um teatro político para favorecer o ministro Salles. No mínimo, mostra falta de coordenação interna do governo.
Pressões por reduções de gastos setoriais são comuns em todos os ministérios e em todos níveis da federação, seja federal, estadual ou municipal. São conversas que demoram, se estendem no tempo, e em geral não há surpresas quando ocorrem medidas de bloqueios ou de contingenciamento.
É uma disputa política que precisa ser explicada pelos envolvidos: ministro Salles, Casa Civil, Secretaria de Governo. A explicação que temos até agora é confusa porque mistura cortes de recursos do ano que vem, do Orçamento de 2021, que sequer foi apresentado, com bloqueio de recursos de 2020.
E a ação do ministro Salles faz ainda menos sentido porque, pelo menos no caso do Ibama, há uma verba já assegurada para o combate a desmatamento. Há um contrato entre a autarquia e o Fundo Amazônia, o Profisc, que paga pelos veículos de fiscalização que circulam na Amazônia. É um contrato que eu assinei em 2018 quando estava à frente do Ibama e que prevê R$ 140 milhões para alugar helicópteros e caminhonetes. Ele vai até abril de 2021 e ainda há R$ 60 milhões disponíveis para usar.
Tem mais dinheiro ainda para o combate ao desmatamento que não está sendo usado. Do dinheiro do fundo da Lava Jato destinado à fiscalização na Amazônia [R$ 630 milhões], R$ 50 milhões foram destinados ao Ibama. Dados do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento do governo federal mostram que, até sexta-feira, o órgão só tinha usado R$ 13,7 milhões disso.
E o mesmo ministro que fala agora que falta dinheiro deixa R$ 1,5 bilhão do Fundo Amazônia parados desde 2019. É dinheiro que já foi depositado e não foi aplicado, e desde junho há uma ação no Supremo instando o Ministério do Meio Ambiente a usar esse dinheiro.
Então o ministro que fala em parar fiscalização por causa de R$ 60 milhões é o mesmo responsável por deixar R$ 1,5 bilhão parados. É um teatro para ele sair como poderoso. Não fecha. É inexplicável, injustificável.
Quais são os efeitos práticos dessa descoordenação?
Suely Vaz de Araújo Se você tentar obter um dado da Amazônia via Lei de Acesso à Informação, o Ministério do Meio Ambiente responde que isso é atribuição do Conselho da Amazônia. É inegável que o assunto é interministerial, mas o papel do [Ministério do] Meio Ambiente sempre foi central.
Veja o Plano para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, por exemplo, que foi assinado em 2004 e está parado. É uma política pública de Estado, não de governo, que envolvia vários ministérios. Foi responsável pela queda de mais de 80% do desmatamento entre 2004 e 2012.
No dado do ano passado, que é medido de 1º de agosto de 2018 a 31 de julho de 2019, houve um aumento de 30% do desmatamento em relação ao ano anterior.
Os dados de 2020 vão ser consolidados pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e divulgados entre outubro e novembro, mas os técnicos já trabalham com um aumento de 30% em relação a 2019, com base em alertas do Deter (Detecção do Desmatamento em Tempo Real), o sistema que guia a fiscalização no dia a dia. As queimadas em 2020 já estão acima do nível de 2019, um ano que foi problemático. Ao olhar os números se vê que o governo está perdendo o controle.
Mas interessa ao governo manter o controle?
Suely Vaz de Araújo A visão que o governo tem da Amazônia é de um desenvolvimentismo mais arcaico, de anos 1970. Um olhar de ocupação, de substituição da floresta por outras atividades.
Esse é um discurso lançado pelo presidente Jair Bolsonaro, é o mesmo do ministro Salles. No general Mourão ele aparece de forma mais ambígua.
Ao mesmo tempo em que o general Mourão fala várias vezes em controlar o desmate, ele estimula indígenas a pressionarem o Congresso a liberarem a mineração em suas terras. Isso é um sinal de “liberou geral”. Gasta-se uma fortuna em GLOs [operações de Garantia da Lei e da Ordem] para resolver um problema que o governo intensifica com seu discurso contra a fiscalização, contra a “indústria das multas”.
Quando o governo deslegitima os órgãos de fiscalização, ele incentiva a explosão das ações de desmatamento. Entende-se que agora pode infringir por que o governo dá anuência a isso. Então pode usar terra indígena, pode entrar em Universidade de Conservação.
É um quadro de descontrole e as GLOs não estão dando resultados, porque não são o modelo correto de fiscalização.
Por que não são?
Suely Vaz de Araújo Esse modelo de GLOs é baseado em mandar um monte de gente pra campo, ele é caríssimo e tem uma má relação de custo-benefício. Os militares não podem autuar infratores e não tem expertise de fiscalização.
Antes de ir para campo, os órgãos ambientais aplicam uma série de atividades de inteligência, planejam, cruzam dados públicos como compra e venda de madeira e gado, analisam imagens de satélite. Mobilizam-se para áreas estratégicas, onde já há indicativo dos envolvidos. Vão lá para resolver o problema.
Fiscalização ambiental não é como fiscalização de trânsito. Você nunca vai ter gente suficiente para cobrir todo o território. Na Amazônia, 3.000 homens somem. Por isso, a atividade de fiscalização ambiental ela é cheia de inteligência e tecnologia.
Nas GLOs, acaba-se enxugando gelo. Não se chega em quem financia a atividade ilícita. Nessa lógica, não adianta você desmontar uma mineração irregular numa terra indígena por que o dono não está lá, só um monte de gente em regime de trabalho semiescravo. Não tem nem para quem entregar o auto de infração.
Como isso afeta a imagem internacional do Brasil? Quais são as consequências para o país?
Suely Vaz de Araújo Episódios como o de sexta (28) mostram fraqueza do governo, indefinição de quem faz o quê. É muito ruim do ponto de vista de cenário internacional essa situação.
A tendência é que se mantenha o bloqueio do mercado aos produtos brasileiros. As consequências são péssimas para a economia. Não é por outra razão que empresários e o mercado financeiro se mobilizam para que a situação melhore.
A Amazônia com esse nível de desmate, os incêndios no Pantanal, os planos de combate ao desmatamento arquivados, a MP da Grilagem. São todos sinais muito negativos.