Um dos aspectos mais discutidos a respeito das eleições municipais do dia 15 de novembro é em que medida o que acontece em Brasília e na política nacional influenciará os rumos do pleito. Mesmo que a escolha dos representantes locais se dê em uma ocasião diferente das eleições estaduais e nacionais, é razoável esperar que as primeiras, de alguma forma, funcionem como uma espécie de recall para o presidente em exercício e como um ensaio para as eleições seguintes.
Uma das expectativas é a de que um presidente com boa aprovação popular faça uso de seu capital político emprestando seu prestígio a candidatos a prefeito de seu partido e de partidos aliados. Seria uma forma de preparar terreno para as próximas eleições nacionais. Não só os presidentes se valem dessa estratégia, como também os legisladores nacionais e estaduais depositam tempo e energia nas eleições locais como forma de fomentar a candidatura de aliados no plano municipal. Isso decorre, entre outras coisas, da importância dos prefeitos como principais lideranças locais e do papel que desempenham como cabos eleitorais para candidatos ao Executivo e ao Legislativo em outros níveis.
Mas há alguma controvérsia sobre a real influência que o presidente e os governadores podem exercer nos rumos das eleições municipais. Por um lado, uma longa tradição de estudos enfatiza o governismo entre as elites locais, designando com isso a tendência dos prefeitos a aderirem aos governos de plantão como forma de assegurar o fluxo de recursos para suas localidades e o acesso às agências burocráticas do estado. Essa tendência teria como resultado colocar os atuais ocupantes de cargos no Executivo em posição de vantagem em relação aos desafiantes. Do outro, há evidências de que a popularidade do presidente não seja decisiva para formatar as preferências dos eleitores nos municípios e de que a vitória local do partido não produza efeitos significativos sobre o desempenho dos candidatos à presidência. Se é assim, faz sentido para o presidente se envolver de corpo e alma nas eleições municipais?
Diante das primeiras eleições locais desde que tomou posse em janeiro de 2019, a postura do presidente Jair Bolsonaro tem sido ambígua. Em princípio, declarou que não pretendia se engajar no pleito. Mas, em um segundo momento, tomou posição a favor de candidatos em cinco capitais brasileiras — São Paulo, Rio de Janeiro, Manaus, Fortaleza e Belo Horizonte. A questão que se coloca é: como um presidente sem partido e sem uma coalizão formal de governo poderá articular alianças e apoios nas eleições municipais?
O cenário atual cria um desafio para os analistas sobre como mensurar o êxito de Bolsonaro e do bolsonarismo nessas eleições
A despeito do fraco enraizamento social da maioria dos partidos brasileiros, eles continuam a desempenhar um papel central no processo eleitoral. O Brasil é um dos poucos países da América Latina em que os partidos permanecem detendo o monopólio da representação política — na região, apenas Argentina, Brasil, Costa Rica, Nicarágua e Uruguai não permitem candidaturas independentes ou avulsas. E mesmo que os partidos tradicionais pareçam enfrentar uma crise sem precedentes na recente experiência democrática brasileira, cabe a eles recrutar candidatos e definir estratégias de alianças, além de distribuir os recursos do fundo partidário e o tempo de propaganda no rádio e na televisão. Há evidências de que os partidos são capazes de organizar seus esforços eleitorais em diferentes eleições e em diferentes níveis, o que explicaria a correlação no desempenho eleitoral dos partidos nos pleitos municipais, estaduais e nacionais.
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Se essas análises estiverem corretas, isso significa que a ausência de uma estrutura partidária privaria o presidente Bolsonaro do principal recurso por meio do qual seria possível articular candidaturas e alianças nos mais de 5.500 municípios brasileiros. Não parece muito seguro apostar que os partidos do denominado centrão, aos quais o presidente se aproximou em seu segundo ano de mandato, serão capazes e/ou estarão dispostos a prover tal estrutura para impulsionar candidaturas alinhadas a ele.
É possível argumentar ainda que as análises que dão centralidade aos partidos no processo eleitoral — por serem anteriores às várias mudanças em curso na política brasileira em anos recentes — não são adequadas para compreender o que está em jogo nas eleições municipais que se avizinham. E que a corrosão dos partidos tradicionais, combinada ao clima de negação da política e à crescente importância das mídias sociais no processo eleitoral, tenha contribuído para gestar novas dinâmicas que cada vez mais dispensariam os partidos como instituições de mediação centrais na democracia. Se é assim, Bolsonaro estaria certo em desconsiderar o partido como canal de articulação política e mobilização eleitoral.
Seja como for, o cenário atual cria um desafio para os analistas sobre como mensurar o êxito de Bolsonaro e do bolsonarismo nessas eleições. Como avaliar se o presidente se saiu bem ou mal? Não será possível fazê-lo pelo quantitativo de prefeitos eleitos por seu partido, já que ele não tem um partido. Também é arriscado fazê-lo a partir do desempenho dos partidos do bloco do centrão, marcado por grande heterogeneidade interna. Será tentador avaliar o desempenho do bolsonarismo a partir das vitórias obtidas por candidatos militares, com vínculos com igrejas evangélicas e discurso centrado em pautas morais, defesa da família e políticas de segurança centradas em ideias de lei e ordem. Mas, aqui, pode-se incorrer no erro de tomar toda e qualquer vitória da direita e da extrema-direita como uma vitória de Bolsonaro. Se antes o campo da direita apresentou-se coeso em seu objetivo de tirar do poder o Partido dos Trabalhadores, agora, já é possível enxergar rachaduras, divisões e disputas acirradas por espaço entre os que até ontem estavam aliados. Nesse sentido, será necessário cautela antes de tomar os resultados dessas eleições como expressão dos humores da população e das elites locais em relação ao governo Bolsonaro.
Marta Mendes da Rocha é doutora em ciência política pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). É professora do departamento de ciências sociais da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) e coordenadora do Nepol (Núcleo de Estudos sobre Política Local). Desde março de 2020 coordena no Nepol uma pesquisa sobre as respostas dos governos municipais à pandemia de covid-19.