Quando os primeiros passos em direção ao isolamento social eram dados no Brasil, já se esperava que a crise no mercado de trabalho atingiria homens e mulheres, brancos e negros, de forma desigual. Por estarem mais presentes nos setores considerados não-essenciais, as mulheres ficaram mais expostas às atividades suspensas, ao passo que os negros estavam em posições mais vulneráveis por constituírem o grupo mais representativo do setor informal. As dúvidas que ainda restavam sobre as desigualdades de gênero e raça eram mais direcionadas ao “quanto” do que para o “se”.
Ocorre que a pandemia não trouxe apenas uma crise que reproduz e intensifica os padrões de desigualdades conhecidos. Ela criou mecanismos que exigem um olhar mais cuidadoso para “como” as desigualdades se aprofundam neste momento. As necessárias medidas de distanciamento social expuseram novas clivagens que deslocaram as desigualdades de raça e gênero no mercado de trabalho ao introduzir um novo sentido para o “ficar em casa” e o “estar ocupado”.
Quem pode fica em casa trabalhando e mais protegido do vírus. Quem não pode tem duas opções: 1) manter-se em casa e se recolher a uma inatividade forçada, ou 2) continuar trabalhando em condições bastante heterogêneas, em que alguns estão mais expostos do que outros. Existem ainda aqueles que tentam procurar emprego mesmo no quadro atual de isolamento social.
O primeiro grupo está em home office, também chamado de “novo normal” do mercado. Algumas áreas estão mais bem amparadas por essa possibilidade de exercer as funções desde casa durante o isolamento social. Profissionais da educação (38,7%), do setor bancário (37,4%), dos escritórios de advocacia, engenharia ou publicidade (33,4%) e da administração pública (21,8%) são exemplos. Mas essas são atividades que exigem níveis educacionais mais altos, e os dados da PNAD Covid-19 mostram que 72,8% dos mais de 11 milhões de brasileiros que estão trabalhando remotamente de suas casas têm diploma de ensino superior. Outros 24,5% estudaram até o ensino médio, e a idade da maioria está entre 25 e 49 anos.
Porém, a possibilidade de realizar home office evidencia a histórica desigualdade educacional entre brancos e negros. Apesar de 39,7% das pessoas brancas e 34,3% das pessoas negras graduadas estarem trabalhando remotamente, o percentual de trabalhadores brancos com diploma universitário (33,5%) é o dobro dos negros (16,6%). Não é surpresa que durante a pandemia os brancos têm duas vezes mais chances de estarem trabalhando de casa (13,8%) que os negros (6,6%). O privilégio de estar no “novo normal” tem cor.
Para os inativos, que representam o outro extremo do mercado de trabalho, continuam a se reproduzir a histórica clivagem de gênero e a associação da mulher aos papéis de cuidado. A desigual divisão das responsabilidades de cuidar dos membros da família e dos afazeres domésticos se intensifica neste momento. Dentre as mais de 45 milhões de mulheres inativas que não procuraram trabalho, 16,7% não o fizeram porque tiveram de “cuidar dos afazeres domésticos ou de parentes”, contra apenas 1% dos 27,2 milhões de homens inativos.
Ao deslocar parcialmente o ‘velho normal’ das fragmentações no mercado de trabalho, a pandemia tende a acentuar as desigualdades de gênero e raça
Mas, além de gênero, a inatividade também tem cor. A pandemia tem afetado os negros em maior medida, não apenas porque são a maioria dos trabalhadores informais, que representam um total de 70% dos postos de trabalho desfeitos apenas no mês de abril, mas porque sobre eles recai o peso da inatividade forçada pelo distanciamento social. A pandemia foi o principal motivo para a população negra inativa não ter procurado trabalho (31,4%), enquanto, para os brancos, o principal motivo da não procura foi “não querer trabalhar ou estar aposentado” (42,2%).
E quem são aqueles que estão saindo para trabalhar? É um grupo consideravelmente menos escolarizado e mais negro que aquele em home office: 38,7% estudaram até o ensino fundamental, 43,6% até o ensino médio, 17,8% até o ensino superior e 54,0% são negros. Do ponto de vista educacional, formam um grupo mais homogêneo como resultado da nova configuração dos extremos no mercado, que puxam os mais educados para o trabalho remoto e os menos educados para a desocupação ou a inatividade. Os que estão trabalhando fora de casa vivenciam uma tendência geral de redução da carga horária e da renda.
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Nesse grupo, as mulheres são a maioria em quase todas as atividades não-essenciais de atendimento a grandes públicos, como os serviços domésticos, a alimentação, a beleza, a hotelaria e o entretenimento. A exceção são as atividades artísticas e o transporte de passageiros. Por outro lado, os homens são a maioria nos setores essenciais que menos reduziram a jornada de trabalho, como a indústria de transformação, os serviços de utilidade pública, a construção civil e a agropecuária. A redução da jornada foi maior não apenas nas ocupações “tipicamente femininas”: mesmo em atividades onde há mais homens trabalhando, a carga horária das mulheres foi mais reduzida.
A redução da carga horária afeta as brasileiras duplamente. Primeiro, porque estão mais sujeitas a perderem parte da renda do seu trabalho. Segundo, porque têm que lidar com a sobrecarga do trabalho doméstico. O prejuízo também é maior entre os negros: em comparação aos homens brancos, cuja queda foi de 24,5%, a queda do expediente foi 1,17 vezes maior entre homens negros (28,7%), 1,36 vezes maior entre mulheres brancas (33,3%) e 1,62 vezes maior entre mulheres negras (39,8%).
Ao deslocar parcialmente o “velho normal” das fragmentações no mercado de trabalho, a pandemia tende a acentuar as desigualdades de gênero e raça. O home office durante o isolamento social é mais um indicativo de que a redução das desigualdades educacionais de raça deve continuar sendo um objetivo primordial, porque o trabalho remoto é um privilégio dos mais educados. E seja pela inatividade forçada ou pela forma como os papéis de gênero são distribuídos, a exclusão do mercado de trabalho evidencia a necessidade de um sistema de proteção social não apenas com cobertura mais ampla, mas também mais sensível às mulheres.
Qualquer que seja o “novo normal” que nos espera, não podemos perder isso de vista. De outro modo, continuaremos a normalizar não apenas a pobreza e a desigualdade de renda, mas também as privações e os privilégios que diferenciam homens e mulheres, brancos e negros.
Ian Prates é doutor em sociologia pela USP (Universidade de São Paulo), pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e research fellow da SAI (Social Accountability International).
Márcia Lima é professora do Departamento de Sociologia da USP, coordenadora do Afro-Cebrap (Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
Caio Jardim Sousa é sociólogo, consultor de análise de dados e pesquisas e pesquisador do Afro-Cebrap.
Colaboraram Lucas Gomes e Gabriel Zanlorenssi com os gráficos.
Este texto foi elaborado como parte dos estudos da Rede de Pesquisa Solidária, formada por mais de 50 pesquisadores, com o objetivo de elevar o padrão, calibrar o foco e aperfeiçoar a qualidade das políticas públicas relacionadas à crise da covid-19.