O coronavírus expôs o quanto a população negra está largada à própria sorte. E quem diz isso são os números ao redor do mundo acerca do impacto da doença, quando observamos o recorte racial.
Em duas semanas, a quantidade de pessoas negras que morrem por covid-19 no Brasil quintuplicou. De 11 a 26 de abril, mortes de pacientes negros confirmadas pelo governo federal foram de pouco mais de 180 para mais de 930.
Nos Estados Unidos, embora sejam 13,4% da população, os negros correspondem a 60% das mortes ocorridas, segundo estudo.
Na Inglaterra, outro estudo demonstra que a probabilidade de um negro morrer é quatro vezes maior do que de um branco.
A que se deve esse fato? Por que negros morrem mais do que brancos na pandemia?
A resposta mais vista em todos os lugares é de que se deve atribuir à disparidade socioeconômica.
Negros são a maior parcela de empreendedores e de trabalhadores informais. Além disso, precisam utilizar o transporte público, assim como ocupam os postos de trabalho ditos essenciais, quando empregados. E, dessa forma, ficam mais expostos ao vírus e, por consequência, tendem a morrer mais.
Entretanto, há um equívoco nesse raciocínio, no que diz respeito ao modo de comparação. O que se deve observar, em verdade, é que, entre as pessoas hospitalizadas, as negras são as que efetivamente morrem mais.
Por esse motivo, precisamos nos esforçar e refletir mais ainda acerca dessa questão, que não para na parte socioeconômica e é mais profunda.
O estudo inglês citado aponta que, mesmo controlados os fatores de renda, classe social e idade, negros ainda assim têm 1,9 vezes mais chances de morrer do que brancos na terra da rainha.
Obviamente não pretendemos e nem podemos nos aprofundar na realidade estrangeira, mas sim observar aqui no Brasil o que acontece, com potencial de influenciar sobremaneira o presente e o futuro de 55,8% da população nacional.
Em reflexões anteriores, pontuamos duas condições que poderiam agravar a situação do negro no país: (1) as predisposições a desenvolverem ou serem portadores de doenças como diabetes, hipertensão, doenças do coração, que, por consequência, são condições para se classificar como grupo de risco; e (2) o chamado racismo institucional na área da saúde.
Nosso destaque vai para como ocorrem os tratamentos de saúde da população negra.
Além de serem vítimas de atos discriminatórios isolados, ao buscarem atendimento médico, pessoas negras não recebem um tratamento isonômico
No artigo “Racismo institucional: um desafio para a equidade no SUS?”, foram expostos relatos de profissionais da saúde e de pacientes do SUS sobre o racismo no âmbito da saúde.
Conforme afirmaram os pesquisadores, as situações discriminatórias “parecem estar ligadas à ideologia do dominador que perpassa o cotidiano, estando introjetada nos profissionais”.
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Assim, a discriminação racial praticada por profissionais da saúde não se trata apenas de atos isolados, são atos que compõem toda uma estrutura racista.
Integrante do Geni (Grupo de Estudo sobre Negritude e Interseccionalidade), da Faculdade de Medicina da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Maysa Teotônio ressalta que pesquisas mostram que as mulheres negras recebem menos analgesia durante a assistência ao parto do que a necessária, por serem consideradas mais fortes.
Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz analisaram prontuários médicos que entrevistaram 9.633 grávidas atendidas no município do Rio de Janeiro em maternidades públicas, conveniadas com o SUS e particulares, e descobriram, por exemplo, que a proporção de mães que não tiveram acesso à anestesia foi maior entre as negras e pardas do que entre as brancas.
O ex-ministro da Saúde Agenor Álvares já admitiu a existência de racismo institucional no âmbito da saúde, que se reflete em diagnósticos incompletos, exames que deixam de ser feitos, recusa de se tocar o paciente e até desprezo em emergências.
“Esse racismo cria condições muito perversas que temos de combater. Queremos criar valores de solidariedade em relação à população negra.”
Por esse motivo, foi criada uma política nacional de saúde para a população negra, que define os princípios, a marca, os objetivos, as diretrizes, as estratégias e as responsabilidades de gestão, voltados para a melhoria das condições de saúde desse segmento da população. Inclui ações de cuidado, atenção, promoção à saúde e prevenção de doenças, bem como de gestão participativa, participação popular e controle social, produção de conhecimento, formação e educação permanente para trabalhadores de saúde, visando à promoção da equidade em saúde da população negra.
Apesar de ter sido criada em 2006, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra não foi implementada como deveria até hoje. Levantamento de pesquisadores da Secretaria de estado da Saúde de São Paulo e da USP (Universidade de São Paulo) mostrou que, em um universo de mais de 5.000 municípios, somente 57 a colocaram em prática, o que demonstra haver um grande caminho a ser percorrido no país.
Certo é que as pessoas negras já são cotidianamente afetadas pelas desigualdades raciais. E além de serem vítimas de atos discriminatórios isolados, ao buscarem atendimento médico, não recebem um tratamento isonômico.
Diante disso, no presente período de pandemia, momento em que toda a sociedade se vê mais vulnerável pelos riscos de propagação da covid-19, é essencial compreender que a desigualdade racial pode deixar a população negra em situação de maior instabilidade.
Assim, o racismo no âmbito da saúde pode ajudar a explicar o problema de haver mais mortes, no tocante ao tratamento desigual sofrido pelas pessoas negras.
O que fazer a partir daí?
Precisamos refundar o dia 13 de maio!
132 anos depois da abolição da escravatura, a situação permanece quase a mesma. A batalha agora é contra um agente invisível que expõe ainda mais o negro ao desafio de encarar a morte diariamente. O Estado não concede condições mínimas para que a população negra possa desenvolver sua liberdade por inteiro.
O direito à liberdade deve estar atrelado a outros, como o da igualdade de tratamento na vida e na saúde. Do contrário, nossa posição restará a mesma de 1888, lutando sem armas por mais um amanhã.
Irapuã Santana é doutorando e mestre em direito processual pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), ex-assessor do ministro Luiz Fux no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Superior Eleitoral. É professor do Uniceub (Centro Universitário de Brasília), consultor da Educafro e do Livres, membro do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual), membro do CBEC (Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais), apresentador do programa “Explicando Direito” da Rádio Justiça e procurador do município de Mauá (SP).