Paul Samuelson, um dos mais renomados economistas do século 20, sugeriu, em entrevista concedida a Mark Blaug em 1995, que a necessidade de atingir o equilíbrio das contas públicas de maneira permanente, ou mesmo durante um determinado número arbitrário de anos, é apenas uma superstição, uma narrativa, que teve como função histórica disciplinar o papel do Estado na economia, reduzindo a ineficiência que supostamente emanaria de suas ações.
Contemporaneamente, essa crença assumiu uma forma nova e aparentemente mais sofisticada, qual seja, a de que é indispensável estabilizar a relação dívida pública/PIB em algum patamar arbitrariamente definido para um certo período. Além disso, esse patamar seria diferente para economia dos países centrais e dos periféricos — também chamados de “em desenvolvimento”. Para estes, repetem os crentes, a razão dívida pública/PIB que os Estados poderiam suportar seria certamente inferior à das economias mais avançadas.
De acordo com os adeptos dessa crença, mesmo em situações dramáticas como a que vivemos, as medidas a serem adotadas pelo Estado devem sempre considerar o impacto que irão provocar nas contas públicas a longo prazo. Por isso devem ser limitadas, de modo a resultarem na menor elevação possível da dívida pública — ainda que ao custo de redução da renda agregada e de elevação na desigualdade —, dado que tal aumento poderia, supostamente, prejudicar a retomada da economia. Muitas vezes, esse argumento se combina a um outro, também bastante usual, de que prevalece em torno da gestão pública o oportunismo e a má-fé, mesmo num momento em que os servidores públicos — notadamente aqueles vinculados ao SUS (Sistema Único de Saúde), ainda que não só — são os que estão na linha de frente do combate à pandemia, bem como os que estão desenvolvendo as pesquisas que nos levarão a melhores tratamentos e à tão almejada vacina.
Quando o que está à frente é o risco de um número ainda maior de perda de vidas e de renda, cabe à sociedade abandonar seus mitos, desvencilhar-se das velhas crenças
Diante da iminência de uma redução dramática da renda provocada pela pandemia da covid-19 e da necessária manutenção das medidas de distanciamento social para evitar seu maior espraiamento, as propostas atualmente encaminhadas pelo governo se mostram inadequadas. Seja quando se considera o volume de recursos envolvidos, seja quando se toma a forma como deverão ser utilizados, o conjunto de medidas adotadas até aqui pelo governo, entre as quais o auxílio emergencial de R$ 600, está aquém do que seria necessário para assegurar a saúde e a renda da população brasileira.
Nesse cenário, é preciso levar em conta as estimativas do PIB recentemente publicadas pelo FMI: o PIB mundial de 2020 deverá cair em 3%, e o PIB do Brasil deverá ser 5,3% menor do que o de 2019. No caso brasileiro, convém observar que se trata de uma previsão alarmante considerando a estagnação que a economia apresenta desde 2014, pelo menos.
Assim, embora os recursos destinados às medidas de combate à pandemia adotadas pelo governo correspondam a aproximadamente 7,8% do PIB, volume similar aos da Austrália (7,2%) e do Chile (6,7%), apenas pouco mais da metade representa injeção líquida de recursos na economia. Expedientes como antecipações de despesa, diferimento de receitas e remanejamentos têm sido utilizados de modo a conter a expansão da dívida pública, que inevitavelmente ocorrerá. Mas isso é um problema? Diante disso, entendemos como muito necessário que uma outra visão sobre os gastos públicos seja levada a conhecimento da sociedade, para que ela possa julgar qual o melhor caminho a seguir.
Na verdade, é necessário considerar que a dívida pública pode ser externa e interna. A dívida pública externa refere-se aos débitos contraídos pelo governo no exterior. Uma característica fundamental da dívida externa é que ela é denominada e liquidada em moeda estrangeira. Assim, o pagamento da dívida externa exige que o governo seja capaz de obter moeda estrangeira, o que nem sempre é possível — e a história está repleta de crises econômicas associadas ao endividamento externo.
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No entanto, quando a dívida pública é predominantemente interna, como é o caso do Brasil, denominada e liquidada em moeda doméstica (reais) não apenas não há qualquer restrição financeira ao gasto público, como também não há nenhum risco de que a dívida pública não seja honrada. Assim, não há razões econômicas que impliquem que o gasto público, hoje indispensável para mitigar o cenário catastrófico, deva ser compensado, no futuro, por medidas de austeridade. Pelo contrário, uma eventual contenção do gasto público, no futuro, com vistas a compensar a expansão no presente, frustrará a retomada econômica. Ademais, fragilizará o tecido social, posto que a austeridade se traduzirá em menos recursos para a saúde pública, para a educação e para as pesquisas, entre outras áreas prioritárias.
Isso nos leva a um outro ponto muito importante, qual seja, o de que a avaliação da gestão dos recursos públicos deve ser feita pela aferição do maior ou menor sucesso dessa política em atingir os objetivos estabelecidos pela sociedade em termos da provisão de bens e serviços e redução da desigualdade. O limite à atuação conjunta da sociedade, por meio orçamento do Estado, não é dado pela capacidade de arrecadação do Estado, mas pela existência de recursos produtivos ociosos e pela própria capacidade do Estado de mobilizar tais recursos e coordenar ações. Em um cenário de elevado desemprego e baixos níveis de utilização da capacidade produtiva instalada, não há razões para esperar que a elevação do gasto público resulte em aumento da inflação.
Nesse contexto, a necessária paralisação de inúmeras atividades não precisa se refletir em desemprego, redução salarial e falência generalizada, sobretudo de micro, pequenas e médias empresas. De fato, a paralisação de setores considerados não-essenciais deve ser suportada por políticas públicas tais como compensação salarial, amplas linhas de crédito às empresas, maior postergação do pagamento de tributos e até mesmo compras públicas. Desse modo, a renda será preservada e a própria sobrevivência das pessoas estará assegurada, fazendo com que a retomada econômica no futuro não seja ameaçada. Ao garantir que os vínculos empregatícios sejam mantidos e que as empresas sejam capazes de atravessar esse período sem problemas de liquidez e solvência, a recuperação econômica tenderá a ser mais rápida.
“Mas a conta virá”, “será um fardo às gerações futuras”, ecoam os adeptos da velha doutrina. Sim, uma conta virá, mas não exatamente aquela conta que nos fazem crer. Isso porque, caso nada ou pouco seja feito — e, infelizmente, é esse o cenário que temos experimentado — a conta que já vem sendo e será, crescentemente, apresentada à sociedade é a de um número expressivo de mortes. Haverá mortes diretamente resultantes da pandemia, e aquelas resultantes da crise econômica a ela associada, em função do colapso do nível de renda e da elevação da pobreza e da miséria, que impedirão os cuidados mais básicos com a preservação da vida.
Quando o que está à frente é o risco de um número ainda maior de perda de vidas e de renda, cabe à sociedade, de forma madura, abandonar seus mitos, desvencilhar-se das velhas crenças. Quando tais crenças se mostram absolutamente disfuncionais à superação dos desafios que a sociedade enfrenta, tal como os que o presente nos coloca, velhos dogmas não devem ser reafirmados com perigosíssimos remendos de ocasião, mas completamente rejeitados.
Compreender as razões pelas quais tal crença foi e continua sendo defendida nas suas diferentes variantes ao longo da história é muito importante. No entanto, não deve obscurecer o fato de que ela não é e nem nunca foi uma descrição adequada do funcionamento da economia. Por que, então, deveríamos nos basear em tal crença para orientar as nossas políticas?
Alex Wilhans Antonio Palludeto é professor do Instituto de Economia da Unicamp e coordenador do Ceri (Centro de Estudos de Relações Econômicas Internacionais) da mesma instituição.
Simone Deos é professora do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisadora do Ceri e coordenadora da Pós-graduação da mesma instituição.