No contexto da pandemia da covid-19, a capacidade coletiva de resposta aos desafios está em teste. Este complexo cenário evidencia que as estratégias e soluções envolvem uma articulação mais ampla. A necessidade de incorporar a diversidade de expertises e competências nunca foi tão explícita, e é neste contexto que ganha destaque o papel que vem sendo desempenhado pelas organizações da sociedade civil.
As ações essenciais desempenhadas por essas entidades durante a pandemia têm sido um contraponto importante ao discurso de antagonismo e desconfiança em relação ao terceiro setor, que, de forma mais ou menos intensa, sempre esteve presente. No nível federal, o ano de 2019 foi marcado por posicionamentos afrontosos veiculados pelo presidente da República e outros líderes do governo, e medidas persecutórias dirigidas às organizações da sociedade civil, como a redução drástica da participação dessas entidades representativas em conselhos e colegiados.
Nas esferas estadual e municipal, também se verificou uma deterioração no relacionamento entre poder público e terceiro setor, sobretudo no contexto de execução de parcerias, com seguidos contingenciamentos e cortes nos repasses de recursos, além de um agravamento no próprio regramento jurídico referente a esses ajustes.
Entretanto, a complexidade dos desafios que o país encara, atualmente, está chamando atenção para as potencialidades de um maior envolvimento da sociedade civil organizada na implementação de políticas públicas e na definição de estratégias inovadoras para lidar com problemas que assolam a coletividade.
Por meio das múltiplas parcerias já existentes com diversos níveis da administração pública, as entidades sem fins lucrativos se provam atores importantes na prestação de serviços essenciais à população. Organizações atuantes na área da saúde, por exemplo, são peças-chave para garantir a sustentabilidade da rede pública e a adequada gestão hospitalar, notada de forma mais evidente pela sociedade no atual cenário de pandemia.
A situação atual também reforça a importância da capilaridade da sociedade civil organizada e sua capacidade de aproximação junto às comunidades mais vulneráveis. Grande parte da atuação das organizações da sociedade civil é pautada pela constante interlocução com a população, e, por isso, muitas vezes estão mais perto das demandas existentes do que o Estado diretamente.
A percepção de que as organizações da sociedade civil têm atuado diligentemente para mitigar os efeitos danosos da atual crise pode proporcionar um legado positivo para a população brasileira ao reafirmar a importância do fomento à sociedade civil organizada.
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O que o momento atual deixa claro é que precisamos fortalecer os atores capazes de auxiliar nos múltiplos desafios que se apresentam
Para que seja possível avançar e capitalizar os aprendizados que este momento proporciona, é necessário desenvolver mecanismos para fortalecer a atuação dessas entidades. Mecanismos que passam por uma revisão nas formas de relacionamento entre essas organizações e o poder público, para subscrever a importância de dinâmicas pautadas na colaboração entre atores.
Parece simples, já que em tese essa foi a dinâmica adsorvida pelos marcos legais. Entretanto, está distante de ser a realidade prática das relações entre poder público e entidades antes da pandemia. Permanece a dificuldade dos entes públicos e de órgãos de controle em superar uma lógica de análise e fiscalização estritamente formal e incorporar as diretrizes dos ajustes existentes, baseados em parceria e cooperação.
É fundamental, no âmbito das parcerias, priorizar o exame de resultados. Com esse avanço, as organizações da sociedade civil são mais incentivadas a desenvolver estratégias inovadoras e eficientes, e, dessa forma, se aproveitam da sua expertise para gerar ganhos à população e o atingimento das finalidades sociais.
Também, faz-se necessário investir na capacitação dos profissionais e no fortalecimento institucional das entidades, para consolidar melhores práticas e fomentar um ambiente de integridade e compliance.
Em paralelo, é essencial estruturar estratégias de sustentabilidade econômica às organizações da sociedade civil. Para potencializar os efeitos positivos da sua atuação, são necessárias medidas que tornem essas entidades menos dependentes dos repasses públicos, como a promoção de incentivos fiscais à filantropia de modo geral, o fomento a novas modalidades de captação de recursos, e o aprimoramento do modelo e governança de fundos patrimoniais.
O que o momento atual deixa claro é que precisamos fortalecer os atores capazes de auxiliar nos múltiplos desafios que se apresentam. A sociedade civil enfraquecida produz efeitos negativos para a coletividade, especialmente numa sociedade marcada pela desigualdade. É preciso incorporar aprendizados, replicar experiências positivas, e, dessa forma, desenvolver estratégias e mecanismos que possam consolidar as organizações da sociedade civil como agentes de mudanças na promoção do desenvolvimento econômico e social brasileiro.
Mariana Chiesa Gouveia Nascimento é mestre e doutora em direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) e head da área de parcerias de impacto social e regulação urbana do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques.