Meu primo Kanari Kuikuro me telefonou várias vezes no sábado pela manhã. Eu estava na feira — sábado é o dia em que saio do confinamento para abastecer a casa. Ao chegar, vi na tela do celular as várias ligações perdidas. Só podiam ser más notícias. E eram. A covid-19 havia, enfim, chegado ao Alto Xingu.
Conversamos por meia hora, sem mais falar sobre a epidemia de sarampo do tempo de seu avô. Afinal, o nosso tempo é agora; a epidemia é desta geração. Entrei no grupo de WhatsApp das lideranças kuikuro para confirmar a informação. A voz calma de Mutuá, hoje vereador em Gaúcha do Norte, pedia a todos que aguardassem a confirmação oficial. Ela veio à tarde, por meio de uma nota técnica do DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) do Xingu. O cacique da aldeia Sapezal e seu filho tinham sido retirados da área apresentando quadro de SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave). Testaram positivo para covid-19 e foram transferidos para Cuiabá. Há notícias, ainda não confirmadas, de outros casos na fronteira leste do Parque Indígena do Xingu, onde se localiza a aldeia atingida.
O território xinguano abriga, hoje, cerca de 7.000 pessoas de 16 povos diferentes, distribuídos ao longo de 2,6 milhões de hectares, formando um sistema multiétnico e plurilinguístico vibrante, com uma vida social e ritual muito intensa. Esqueça a imagem da Amazônia como um deserto verde com povos espalhados e isolados! Pense, ao contrário, em sistemas regionais, ligados em rede, com dezenas de aldeias interligadas, por onde circulam informações, pessoas, objetos e, infelizmente, vírus também.
Essas redes foram rapidamente atingidas pelas epidemias coloniais — os vírus eram levados de pessoa a pessoa por centenas, milhares de quilômetros sertão adentro. Quando todos estavam morrendo, as pessoas ainda saudáveis procuravam refúgio em outras aldeias, utilizando-se desse sistema reticular. E assim levavam a doença para um número cada vez maior de pessoas. É isso, justamente, o que tememos que venha a acontecer hoje no Xingu. Por isso, é preciso agir com rapidez e diligência.
O desafio para a nossa geração é fazer com que a covid-19 não seja o sarampo de 1954. E, para isso, precisamos trabalhar todos juntos
As epidemias do passado contêm ensinamentos para o presente. Volto à devastadora epidemia de varíola que varreu o Maranhão e o Pará em 1695, da qual falei em texto anterior. O padre Bettendorff conta que um navio negreiro chegou a São Luís trazendo “uma pessoa malsã de bexigas”. O navio foi proibido de ancorar perto da cidade. Porém, a cautela foi logo abandonada em função da avidez dos moradores por mão de obra escrava e dos interesses do capitão da nau que ameaçava processar a cidade por perdas e danos. O resultado? Mortes sobre mortes, durante meses, com as bexigas se espalhando do Maranhão ao Pará. Como concluiu argutamente o jesuíta, aquilo “que parecia ser para seu remédio [dos moradores] foi para sua grande ruína”. Mas, claro, a conta maior foi paga pelos povos indígenas: “Caíram e foram morrendo tantos, que às vezes não havia quem acudisse aos vivos e enterrasse os mortos”.
O que Maricá tem a ensinar para o governo federal
A necropolítica na decisão de reabrir as escolas de São Paulo
Governo aberto e encarceramento: uma conexão necessária
Rapidez e diligência é tudo o que não tem caracterizado as ações governamentais frente à pandemia. É preciso admitir: estamos diante do desgoverno. Aqueles que deveriam promover a vida e o bem-estar da população são os próprios promotores da desordem, tal qual o capitão da nau no relato de Bettendorff, que “foi deixando entrar” as pessoas contaminadas, trazendo assim, insidiosamente, a ruína de tanta gente (mas, como se sabe, a ruína nunca é igualmente ruinosa para todos).
A covid-19 entrou no Brasil pelos viajantes a jato. Começou como uma doença de ricos, mas se espalhou seguindo a topologia da desigualdade brasileira. Afinal, isolamento social é algo relativamente fácil de se fazer em casas monofamiliares, com carro particular, recursos para comprar por delivery e internet de banda larga para home office. Sem decisivo apoio governamental, isolar-se é um luxo não disponível a boa parte da população de um país em que 1% concentra cerca de 1/3 da renda nacional e 10% concentram mais da metade. Nesse quadro, o desgoverno não nos ameaça a todos da mesma maneira. E nesse quesito, os indígenas se juntam aos mais pobres, entre os quais não apenas se observa um número maior de casos, como também uma porcentagem maior de óbitos.
A crescente pressão nacional e internacional para evitar um genocídio indígena fez a máquina do governo começar a se mexer, ainda que lentamente. Até aqui, contudo, a resposta global dos DSEIs deixou a desejar. Houve, inclusive, casos nos quais os próprios agentes sanitários foram vetores de contaminação, tanto nas Casas de Saúde Indígenas nas cidades, como nas próprias áreas indígenas. E agora, chegam também notícias de que militares poderiam ser os responsáveis pela introdução do vírus na Terra Indígena Parque do Tumucumaque. Esses fatos mostram como o desgoverno no topo atinge o funcionamento na base. Saúde pública é assunto para médicos. Ninguém jamais imaginou apontar epidemiologistas e infectologistas para o ministério da Defesa.
Desde março, venho atuando com um grupo de pesquisadores e indígenas no monitoramento e prevenção da covid-19 entre os Kuikuro, um dos quatro povos de língua karib que habitam a porção meridional do Parque Indígena do Xingu, com os quais convivo há mais de 20 anos. Trata-se de um projeto piloto que, esperamos, possa ajudar na implementação de um projeto mais amplo, abraçando todo o Xingu. O desafio para a nossa geração é fazer com que a covid-19 não seja o sarampo de 1954. E, para isso, precisamos trabalhar todos juntos — órgãos governamentais, associações indígenas locais, instituições de pesquisa e ONGs, contando sempre com o apoio técnico do Projeto Xingu da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), que atua na área há 55 anos. É hora de unir esforços e estabelecer uma governança eficiente para atender a saúde indígena.
Tarde da noite, eu ainda trocava mensagens por WhatsApp com as lideranças kuikuro. Kauti, agente indígena de saúde, lançou a proposta: “vamos fazer lockdown na aldeia!” No dia seguinte, enquanto escrevia essas linhas, os Kuikuro discutiam como proibir a visita de parentes e amigos de outras aldeias. Se isso não é trivial para ninguém, é ainda mais difícil em um contexto indígena, onde estar em relação é a essência da boa vida. Mas governança é isso: tomar o timão e enfrentar o mar bravio, sem fingir que nada está acontecendo.
Carlos Fausto é professor de antropologia do Museu Nacional, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), e global scholar da Universidade de Princeton.