Em 15 de novembro, o Brasil comemorou a Proclamação da República, e Itu, estância turística com 175 mil habitantes a 100 quilômetros de São Paulo, relembra com orgulho a sua importância histórica pela participação no movimento republicano. Em uma rua saindo da praça principal da cidade, ainda está o sobrado azulejado onde aconteceu em 1873 a Convenção Republicana de Itu, que deu origem à campanha republicana e fundou o Partido Republicano Paulista. O casarão arejado, com azulejos azuis e brancos desenhados com episódios históricos, abriga atualmente o Museu Republicano de Itu, do complexo do Museu Paulista. Depois de 15 anos, volto ao Museu Republicano de Itu, lugar de afeto que me acolheu por tantas tardes no silêncio de seus cômodos amplos e de seu jardim. É como visitar a avó, muda uma ou outra coisa, mas a essência do museu que me recebe é a mesma: a memória está cuidadosamente guardada. Algo, no entanto, me parece incômodo.
Deixei-me sentir a culpa de rememorar e homenagear os republicanos, esquecendo aqueles de Canudos dos quais tiramos a vida, o passado e o futuro
Os anos não mudaram o Museu Republicano de Itu, que completou em 2023 seu centésimo aniversário. O museu exibe logo no saguão de entrada uma placa da inauguração em 1923, que celebra o “despontar e a energia do Partido Republicano Paulista fazendo ouvir as vozes de sua fé e as de sua esperança no triumpho definitivo da república federativa”. Os azulejos, encomendados pelo primeiro diretor, Affonso Taunay, narram acontecimentos políticos como a adesão dos liberais de Itu à Revolução de 1842, ou a reação dos chefes nacionalistas de Itu contra o movimento bernardista de São Paulo em 1822. Distribuídos pelos cômodos estão telas, móveis e objetos, muitos adquiridos por Affonso Taunay, que recriam situações como a sala da convenção de 1873, ou o gabinete de trabalho de Prudente de Morais, cidadão ituano e terceiro presidente da República (1894-1898). O museu também recria os ares de “uma rica residência da época áurea do café”, exibindo móveis finos, peças de louça e até uma cadeirinha de arruar em que senhores eram carregados por seus escravizados. Cem anos depois de sua inauguração, o museu – cujo foco está sobre o período de configuração do regime republicano no Brasil – conserva o objetivo idealizado por Affonso Taunay: “mostrar como era uma casa paulista de família abastada do século 19 e destacar a participação dos membros do Partido Republicano Paulista na política nacional”.
A sensação de incômodo do meu reencontro com o Museu Republicano de Itu só pode, então, ter vindo de mim: não foi o museu, mas fui eu quem mudou com os anos de distância. Criada na branquitude do interior paulista, nos últimos anos me deixei vulnerável à culpa de ver as fotos de Flávio de Barros sobre as últimas horas de vida das pessoas massacradas na investida do Exército brasileiro contra Canudos em 1897, no governo do então presidente Prudente de Morais. À culpa de compreender com Pedro Vasconcellos e Joana Barros que os relatos de Euclides da Cunha sobre Canudos em “Os sertões” e no jornal O Estado de S. Paulo desumanizam uma comunidade que, divergindo do ideal republicano liberal, parecia caminhar em direção a uma sociedade igualitária baseada em uma produção rural socialista. À culpa de sentir-me do lado de uma violência extrema historicamente perpetuada contra os trabalhadores rurais que, em condição de vulnerabilidade imposta pelos latifúndios, sujeitam-se a situações degradantes de trabalho para garantir a sobrevivência, conforme nos conta Clovis Moura. À culpa de conhecer Canudos como uma comunidade devastada por força do movimento republicano e que, constituindo uma alternativa para a libertação de um povo oprimido, foi degolada, incendiada, afogada, morta e imortalizada como ensandecida, inviável e impossível. Por fim, revisitando o Museu Republicano de Itu, deixei-me sentir a culpa de rememorar e homenagear os republicanos, esquecendo aqueles de Canudos dos quais tiramos a vida, o passado e o futuro, para consagrar vitoriosa a República brasileira depois de uma de suas maiores guerras civis.
O 15 de novembro também é dia de rememorar a barbárie que nos espia a partir do lado escuro da memória do movimento republicano, escovando a nossa história a contrapelo. Não é por acaso que a nossa sociedade se esquece de Canudos: os esquecimentos e os silêncios da história revelam mecanismos de manipulação da memória coletiva, de acordo com o historiador Jacques Le Goff. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é, para Le Goff, uma das grandes preocupações das forças que dominam as sociedades históricas. Isso porque, esquecendo-se suas alternativas, uma sociedade de memória opaca tem limitada a sua garantia de exercer uma outra possibilidade de futuro. A manipulação da memória é, assim, uma forma de perpetuação da dominação que subjuga as sociedades à impossibilidade de escolha. Rememorar os corpos prostrados no chão de Canudos – não como despojos exibidos no cortejo triunfal dos vencedores históricos (parafraseando Walter Benjamin), mas como alternativa barbaramente inviabilizada pelo projeto republicano – é questionar uma ordem imposta mediante violência e apropriar-se da liberdade de pensar outra forma de desenvolvimento para a nossa sociedade.
Marcos Napolitano, em um ensaio publicado no Nexo, refletiu, a partir dos protestos contra o monumento ao bandeirante Borba Gato, sobre a necessidade de uma outra política pública de memória, que seja pautada nos direitos humanos e promova a democratização, a pluralidade cultural, o antirracismo e a inclusão social. Por princípio, disse o historiador, “uma política pública nunca deve ir de encontro ao direito à memória dos diversos atores e grupos sociais e suas identidades religiosas, culturais ou político-ideológicas, que não devem ser tuteladas nem por governos, nem por historiadores”. Endossando Marcos Napolitano, considero este 15 de novembro e o aniversário de 100 anos do Museu Republicano de Itu uma oportunidade para revisitar a sua longeva política de memória e esquecimento, propondo uma política que reconheça a responsabilidade republicana sobre o massacre de sua alternativa histórica, imortalizada em Canudos.
Vitória Lorente é mestranda em ciência política na Universidade de São Paulo.