Foto: The Tampa Bay Estuary Program/Unsplash

Os mutirões para a gestão compartilhada de territórios


Processo participativo permite cidadania ativa e é ainda bastante necessário no Brasil. Mobilização pode melhorar a qualidade de vida nos centros urbanos, sobretudo em territórios vulnerabilizados

Cinquenta jovens brasileiros e de outros países, como África do Sul, Índia e Líbano, uniram-se em julho aos moradores do Caminho Santa Maria e da Alemoa em Santos (SP) para construir em apenas três dias espaços de lazer, áreas de convivência e hortas para as duas comunidades. Juntos, eles colocaram a mão na massa e, por meio de mutirões, acabam de tornar reais as melhorias sonhadas coletivamente.

Esse é apenas um exemplo recente da força e do poder do mutirão, um processo participativo que permite uma cidadania ativa e que é ainda bastante necessário no Brasil porque pode melhorar a qualidade de vida nos centros urbanos, sobretudo em territórios vulnerabilizados, em um claro alinhamento ao 11º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da ONU (“Cidades e Comunidades Sustentáveis”), a ser alcançado até 2030.

Cuidar de uma comunidade em sistema de mutirão geralmente traz o benefício de desdobrar-se em outras melhorias futuras

Palavra de origem tupi (moti'rõ), o mutirão é uma prática colaborativa antiga e ancestral, que acontece em vários povos, territórios e culturas, pela qual me apaixonei 24 anos atrás, ainda na faculdade de arquitetura, e que mantém uma importância muito atual. Ele contribui para um melhor usufruto do espaço público coletivo, reforça o sentimento de afeto, vínculo e pertencimento ao bairro ou localidade, melhora o convívio entre os moradores e renova as esperanças da comunidade, como já vi acontecer inúmeras vezes aqui no Brasil e em Guiné-Bissau, onde acompanhei a construção, em mutirão, de espaços comunitários.

Essa prática tem uma natureza agregadora, uma vez que reúne e mobiliza em torno de um propósito comum dezenas de pessoas de diferentes idades (crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos) e com diversos talentos, habilidades, recursos e histórias de vida – em grupo, eles “sonham acordados” ou “envisionam”, como nos lembra o líder indígena e filósofo Ailton Krenak. Consiste ainda em um grande exemplo de celebração da diversidade humana, que é uma característica bem importante para as construções coletivas porque agrega várias visões e assim enriquece o todo e o resultado final.

Na história recente, são muitos os exemplos de mutirões que devem ser celebrados e retomados, seja a construção coletiva e autogerida de casas em grandes cidades com fomento e apoio do poder público, seja a limpeza de mares e rios ou de parques e praças, a pintura coletiva de escolas, a reforma coparticipativa de um museu, ou ainda os mutirões para desafogar o sistema judiciário ou para acelerar medidas cidadãs da gestão pública.

Além disso, cuidar de uma comunidade em sistema de mutirão geralmente traz o benefício de desdobrar-se em outras melhorias futuras. A partir da semente inicial, os moradores tendem a ficar motivados para buscar mais conquistas como novos equipamentos públicos (postos de saúde, parques infantis, creches, coleta regular de lixo, hortas urbanas etc.).

Essas novas conquistas posteriores irão retroalimentar a sensação de orgulho e de pertencimento dos moradores e colaborar aos poucos para o desenvolvimento local com a chegada novas políticas públicas e para o alcance, sucessivamente, de vários outros Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, como os ligados à saúde e bem-estar e à redução das desigualdades. Na Baixada Santista (SP), temos alguns exemplos palpáveis desse círculo virtuoso, registrados no Dique da Vila Gilda e no Paquetá.

Sou entusiasta da tecnologia coletiva do mutirão como forma de trabalho coletivo justamente pelo poder transformador e pela força e rapidez do coletivo para melhorar a vida e a convivência em espaços urbanos. Como elemento socioeducativo, um mutirão de curto prazo pode criar vínculos e ser altamente eficaz. Entretanto, a prática pontual e socioeducativa também pode conformar grupos de trabalho com maior perenidade, cooperativas com a previsão de remuneração por serviços públicos de cuidado local e evoluindo para iniciativas de gestão compartilhada. O poder público tem suas limitações de alcance e a gestão territorial pode e deve ser compartilhada, criando oportunidades de trabalho e renda, cooperativas de cuidados territoriais a partir do envolvimento da participação cidadã.

Em São Paulo, por exemplo, a cidade mais populosa do Brasil, com cerca de 11,5 milhões de habitantes, há regiões periféricas com poucos espaços públicos de convivência que poderiam adotar muito mais essa prática, ainda mais se houvesse a cooperação direta e efetiva do poder público para zeladorias e/ou comitês de gestão de praças que permitissem uma maior participação, envolvendo outros agentes locais como empresas e outras instituições (igrejas, associações de bairro, ONGs etc.). Caminho para a efetivação da cidadania, uma cidade mais humanizada e acolhedora passa também por práticas de educação urbana, fortalecimento do comum e das comunidades e a gestão compartilhada dos territórios.

Natasha Mendes Gabriel é arquiteta, mestranda em Planejamento e Gestão do Território na Universidade Federal do ABC, educadora, cofundadora e diretora do Instituto Elos, há 24 anos trabalha com desenvolvimento pessoal e comunitário e forma lideranças no programa Guerreiros Sem Armas, que já qualificou centenas de pessoas de 57 países.

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