A elaboração de PPAs, ou planos plurianuais, está prevista na Constituição Federal e tem por objetivo organizar o planejamento do Orçamento público. É um processo fundamental para a elaboração eficiente das políticas públicas, considerando o programa escolhido pelo eleitor durante o processo eleitoral, mas respeitando os princípios constitucionais que regem a administração estatal. Em São Paulo, estado com o maior orçamento do país, a proposta de PPA chegou à Assembleia Legislativa em agosto, após um processo nada transparente de formulação pelo governo estadual.
A discussão do PPA paulista, um documento monumental com mais de 900 páginas, chama a atenção pela ausência de metas e indicadores claros ou coerentes, e de memórias de cálculo ou qualquer outra justificativa técnica que garanta bases sólidas para a execução da maioria das ações propostas. A plataforma Justa acompanhou o debate e focou temas como transparência, políticas para egressos do sistema prisional, políticas de drogas e letalidade policial e, graças ao apoio de parlamentares comprometidos com avanços efetivos para toda a população paulista, as sugestões do Justa foram incluídas entre as mais de 730 emendas ao PPA apresentadas na Assembleia Legislativa.
As ações previstas para as políticas de drogas de São Paulo nos próximos quatro anos são um bom exemplo da falta de transparência do plano plurianual
As ações previstas para as políticas de drogas do estado nos próximos quatro anos são um bom exemplo da falta de transparência. O plano enviado pelo Poder Executivo indica a existência de 143 “cenas abertas de uso”, as chamadas “cracolândias”, que não são exclusivas da região central da capital paulista. Ao mesmo tempo, o projeto não aponta de onde vem esse número, onde ficam esses locais ou quantas pessoas frequentam essas cenas. Em 2027, segundo o governo Tarcísio, a meta é ter somente 94 delas. Como chegamos a esse número? Quantas pessoas serão beneficiadas? Não sabemos. Ainda sem lastro de cálculo multiplicam-se metas de internação. São previstas, dentre outras, 800 mil diárias pagas à iniciativa privada para “ações complementares”, 42 mil internações em hospitais estaduais, além de 4.800 “por uso prejudicial de substâncias psicoativas”. De outro lado, apenas 5.000 pessoas serão beneficiadas por ações de prevenção ao uso de drogas. As contas não parecem fechar.
Também é meta prevista na política sobre drogas o avanço de 100% do empreendimento “Centro administrativo do Governo, Campos Elíseos”, que prevê a transferência da administração paulista para a região central, em parceria com a iniciativa privada. A diminuição de roubos e furtos é indicador previsto na política. Obviamente trata-se de um problema real e que afeta parte significativa da população, mas crimes patrimoniais devem ser tratados no campo da segurança pública, e não como política de drogas, que - a rigor - deveria beneficiar pessoas, e não objetos.
O PPA elaborado pelo governador e sua equipe também ignora completamente a crise das mortes decorrentes de intervenção policial no estado, cujos índices pioraram de forma aguda nos primeiros seis meses da atual gestão. Além de não prever investimentos em ações para reduzir a letalidade policial, o governo tem sabotado ferramentas importantes para o combate à violência policial, como a diminuição injustificada do orçamento destinado ao uso de câmeras corporais pelas polícias. Como se não bastasse a ilegalidade e imoralidade da negligência em relação aos níveis inaceitáveis de letalidade policial no estado, a omissão ainda poderá impedir São Paulo de acessar recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública, uma vez que - segundo portaria publicada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública - o acesso a essas verbas está condicionado a plano de ações para a redução da violência policial. Para tentar contribuir com esse debate, o Justa apresentou aos deputados uma proposta de emenda com a meta viável de redução de 50% nas mortes decorrentes de intervenção policial até 2027.
A mesma omissão injustificável pode se verificar em outra questão fundamental. Ao contrário das duas últimas edições, o plano para o quadriênio 2024-2027 não prevê recursos exclusivamente orientados para os egressos do sistema carcerário e suas famílias, prejudicando políticas de reintegração após o cumprimento da pena. Pesquisa olhando para os dados de 2021 mostra que, para cada R$ 1 investido em ações para egressos, o estado gastou R$ 505 com o sistema prisional e outros R$ 1.769 com as polícias. Isso significa que estamos investindo pesado em prender pessoas, mas quase nada para oferecer alternativas para quem deixa a prisão depois de cumprir sua pena.
O fato é que essas pessoas um dia sairão do cárcere, o que faz ser do interesse de todos - sem exceção - que possam encontrar alternativas para sobreviverem na legalidade e assim quebrar o ciclo de violência que caracteriza a vida de milhões de brasileiros e brasileiras. Não se trata, de forma alguma, de desresponsabilizar aqueles que cometeram crimes, mas tão somente de cumprir o que determina a lei penal.
Por fim, também foi apresentada uma emenda, segundo nossa sugestão, para aumentar a transparência dos remanejamentos orçamentários promovidos pelo governo - os chamados créditos adicionais, que são autorizações de despesas não previstas na lei orçamentária. A proposta atual garante ao Executivo a possibilidade de remanejar até 17% do orçamento, o que neste ano representa R$ 54 bilhões e que, assim, poderiam ser distribuídos sem discussão pela Assembleia Legislativa. Dados produzidos pelo Justa indicam que parte desses recursos “adicionais” têm sido sistematicamente destinados à complementação das folhas de pagamento de carreiras jurídicas como o Ministério Público e o Poder Judiciário, o que pode representar uma moeda de troca pouco transparente e capaz de gerar conflitos de interesse importantes em processos de barganha que passam ao largo da discussão pública.
Agora, o PPA paulista - transformado no projeto de lei nº 1.244/2023 - encontra-se parado na Comissão de Finanças, Orçamento e Planejamento da Assembleia Legislativa. A deputada Fabiana Barroso (PL) foi designada relatora em 26 de setembro, mas até agora não houve qualquer discussão sobre o texto no colegiado. Cabe a essa comissão a análise das emendas que podem aperfeiçoar o texto inicial do governo, mas já se passou mais de um mês desde a distribuição da relatoria do PPA. É importante lembrar que o PPA 2020-2023, proposto pela gestão anterior, foi elaborado em 2019 mas só se tornou lei em abril de 2020. Repetir o erro e postergar a discussão sobre a peça fundamental do planejamento das políticas do governo para o próximo ano prejudica o entendimento dos cidadãos sobre os planos do governo. É imprescindível que a sociedade paulista possa conhecer e discutir o plano que organizará a administração pública estadual pelos próximos quatro anos, e esperamos que a Assembleia Legislativa de São Paulo, a Comissão de Finanças e Orçamento e a relatora do projeto se empenhem em debater o plano com a sociedade.
Luciana Zaffalon é advogada, doutora em administração pública e diretora-executiva do Justa.
Felippe Angeli é advogado e coordenador de advocacy do Justa.