Há, no dia 7 de novembro de 2023, o simbólico aniversário de Albert Camus (1913-1960), que completaria 110 anos. Camus tem aparecido, ao longo dos últimos anos, com alguma frequência entre os best-sellers do mercado editorial brasileiro, muito em função do romance “A peste”, durante a pandemia de covid-19. Isso, por sua vez, motivou a editora Record a lançar títulos que há muito não circulavam, ou que eram ainda inéditos, nas livrarias do Brasil, como “O primeiro homem” e “Reflexões sobre a guilhotina”.
Porém, apesar de laureado literato (Nobel de Literatura de 1957), Camus verdadeiramente alcançou status de intelectual público na França através de sua liderança no jornal Combat. Naquele tempo, em que a esquerda francesa (de maioria comunista) estava lidando com o abalo da invasão alemã e instauração da França de Vichy, o Combat surgiu como uma alternativa dentro da própria esquerda e, rapidamente, esteve entre as maiores tiragens das folhas da época. Camus, redator-chefe, na maior parte das edições, atuou tanto como editorialista, quanto como articulista, o que reforça seu protagonismo em relação ao sucesso do periódico.
É através do estudo de seus textos opinativos publicados no Combat que é possível questionar — senão refutar — pechas que foram cristalizadas sobre o autor ao longo dos anos
Contudo, o jornalismo do escritor de “O estrangeiro” parece ter sido esquecido, em grande medida, pelo grande público e pelas ciências humanas, de modo geral. Grosso modo, dedica-se muito mais atenção e tempo aos seus romances e seus ensaios filosóficos do que ao seu espólio jornalístico. Um grande erro, pode-se dizer. Afinal, reside em seus editoriais e artigos articulações de seu pensamento, voltado, nesse caso, às problemáticas a que estava submetido à época.
É através do estudo de seus textos opinativos publicados no Combat que é possível questionar — senão refutar — pechas que foram cristalizadas sobre o autor ao longo dos anos, sobretudo após a ruptura com Jean-Paul Sartre e a esquerda comunista francesa, muito por conta da repercussão do ensaio “O homem revoltado”. Pode-se lembrar de casos como (1) a relação de Camus com o conflito de independência argelino (do qual foi acusado de ter incapacidade de se posicionar, ou de defender a manutenção da política colonial) e (2) um moralismo ingênuo sobre a União Soviética (tratado como um idealista ingênuo, no período que sucedeu a Segunda Guerra Mundial).
Sobre o primeiro caso, Camus é citado marginal e muito raramente em livros sobre o conflito de independência da Argélia. Quando isso ocorre, é mencionado como representante de um contraponto ao ideário defendido pelos rebeldes, sobretudo, aqueles que integraram o FLN (Front de Libertação Nacional). Contudo, é necessário lembrar que, quase dez anos antes do conflito, de fato, iniciar, Camus era criticado na França por ser conivente com ataques realizados pela FLN contra europeus e descendentes de europeus nascidos na Argélia. Quer dizer, há uma mudança radical do rótulo atribuído ao autor, que, na realidade, entendia que a França deveria garantir a democracia à população argelina, sob pena de se tornar insustentável em seu próprio território, caso não o fizesse. Isso, sem poupar críticas aos anos de colonização francesa no continente africano: “a Europa deveria se [auto] acusar, uma vez que suas constantes convulsões e contradições tem conseguido produzir o mais longevo e o mais terrível reino de barbarismo que o mundo já conheceu”.
Enquanto isso, sobre o segundo ponto, sobre a etique antistalinista e anticomunista, é que, ao ler “O homem revoltado”, tudo indica que o autor entendia o regime soviético como epítome da corrupção dos princípios do ideário revolucionário, resultando em um fim em si mesmo, justificado por intelectuais da base de apoio do regime. Todavia, perto do fim da Segunda Guerra, o autor escreveu três editoriais dedicados a tratar sobre a URSS naquele contexto. Para a surpresa de muitos, Camus via a União Soviética como uma aliada premente no combate ao problema alemão. Sem deixar de salientar que o desenvolvimento acelerado daquele Estado, e mergulho da França na crise cívica, econômica e política, suscitavam uma reordenação das relações políticas internacionais, a fim de brecar o avanço de ideologias nazifascistas. Além disso, propunha que se formasse uma organização específica (como, logo depois, criou-se a Organização das Nações Unidas, a ONU). Para ele, a URSS ocupava a cadeira que, outrora, a França desfrutava: a do prestígio, da influência internacional. Aos seus olhos, essa mesma França falhou em diversas questões ao longo do século 20, em especial, negligenciando o crescimento soviético.
A leitura do jornalista e romancista procura contextualizar algumas das decisões políticas de Stalin durante a Segunda Guerra. Não existem vestígios de uma aversão tosca e panfletária de antemão, como Sartre deu a entender, na famosa tréplica, publicada em sua revista, Les Temps Modernes, em 1952. O dissenso e as críticas ásperas presentes em “O homem revoltado” ocorrem em uma época diferente: a da Guerra Fria. Nesse período, os confrontos aconteciam por procuração e os interesses dos participantes não eram mais lutar contra o nazifascismo.
Enfim, Camus parece, talvez mais do que nunca, tornar-se um pensador caro ao público de leitores/as do Brasil. Cresce, cada vez mais, o interesse por ir além de sua literatura. Influente em seu tempo, mas não impune por suas discordâncias com a esquerda hegemônica daquele tempo, o autor sofreu os dissabores da dissidência. A lição que se percebe é que a plataforma para ser creditado como intelectual público, pode ser, também, hoje, o caminho para desmistificar assunções perpetuadas a seu respeito. Estão contidos em sua prosa jornalística, portanto, elementos tão preciosos quanto os de suas outras ocupações, que dizem respeito sobre ele e sobre a própria história do Ocidente no, nem tão distante, século 20. A atualidade e a fortuna de seu pensamento e o registro que ele oferece às questões morais do nosso tempo são, quem sabe, motivos para celebrar essa data.
Arthur Grohs (né F. Simões Pires) é formado em jornalismo pela UFPel (Universidade Federal de Pelotas), mestre e doutorando em Comunicação pela PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul).