Entregue o projeto de lei do Plano Plurianual ao Congresso Nacional, cabe reconhecer a realização de processo participativo inédito. Os números alcançados trazem a dimensão do feito e apontam para o tamanho do desafio de ampliar a qualidade da participação social no Brasil. Em especial, se a ação-reflexão-ação for o movimento que ancora convicção de que é possível ser mais.
O Observatório Internacional da Democracia Participativa, em seu guia prático para avaliação de processos participativos, traz quatro dimensões de análise para avaliar a qualidade dos processos participativos: quem participa; em que participa; como participa; e quais efeitos da participação. A aspiração de um processo participativo de qualidade é que sujeitos políticos diversos tenham liberdade de expressão e condições de deliberação para influenciar decisões públicas relevantes de modo a fortalecer a democracia.
Processo participativo pode ser mais representativo se for desenhado e desenvolvido a partir da diversidade demográfica e ideológica presente na sociedade
Nesse sentido, ao pensar em quem participa, cabe falar da quantidade e da diversidade de sujeitos envolvidos. Ao tratar do objeto da participação, vale ter em mente a relevância do conteúdo e a capacidade de influência na tomada de decisão. Ao abordar como ocorre a participação, é significativo pensar nos recursos disponíveis para desenvolver o processo, bem como na metodologia para deliberação. Por fim, ao analisar os efeitos da participação, é central pensar em resultados diretos, como encaminhamentos e efeitos práticos das deliberações, mas também em resultados indiretos, talvez intangíveis, a exemplo de valores e atitudes democráticas.
Indubitavelmente, o processo participativo do PPA 2024-2027 ampliou a extensão da participação no planejamento governamental. A quantidade de pessoas envolvidas chama a atenção, mas ainda é necessário aprofundar a análise sobre a diversidade desses sujeitos políticos. Sem desconsiderar as características sociodemográficas das participantes, é cabível questionar quão diversos no espectro político foram os sujeitos envolvidos. Se um processo alcança muitas pessoas, ele tem extensão, mas se a ampla maioria de quem participa representa forças políticas convergentes, há um limite de representatividade. Em uma sociedade dividida, considerando a potência da participação como meio para a união, é possível ser mais diversa.
Um processo participativo pode ser mais representativo se for desenhado e desenvolvido a partir da diversidade demográfica e ideológica presente na sociedade. Sujeitos políticos diversos precisam ser mobilizados e efetivamente incluídos. Para que a participação social seja mais diversa, precisam ser reconhecidas e transpostas barreiras relativas a analfabetismo, capacitismo, desigualdades de renda, etarismo, etnocentrismo, exclusão digital, misoginia, racismo e transfobia. Além disso, a diversidade de concepções e práticas políticas precisa ser valorizada e incorporada ao modo de funcionamento dos processos participativos.
O processo participativo do PPA 2024-2027 foi relevante, pois é inegável a importância do planejamento para o ciclo de gestão das políticas públicas. O desafio é saber qual foi a margem de decisão compartilhada com a sociedade. Houve esforço para incorporação de propostas das participantes ao conteúdo do plano, mas não ficaram evidentes os critérios de decisão para tal incorporação. Nesse sentido, pensando em transparência e legitimidade, as regras e os limites para um processo participativo dessa complexidade, como parece vir a ser o Orçamento Participativo, precisam ser definidos previamente ao início da mobilização e em instância pública e colegiada, a exemplo do Conselho Nacional de Participação Social.
Operacionalizar o PPA Participativo na extensão e no tempo pretendido exigiu recursos de todas as ordens (administrativa, institucional, política e técnica). Foi o empenho de servidoras(es) e dirigentes políticas(os) de diferentes ministérios que mobilizou as condições para viabilizar o processo participativo, desde a construção da plataforma digital até a realização das plenárias estaduais e do fórum interconselhos. Ao mesmo tempo, gargalos foram enfrentados no desenho e desenvolvimento da metodologia de participação. Por isso, é necessário refletir sobre a metodologia, pois dependendo da concepção e da prática da participação social, é possível ser mais dialógica.
Diálogo é um encontro que possibilita reconhecimento mútuo e escuta ativa de diferentes perspectivas. Isso implica em opções práticas que refletem concepções sobre o processo participativo, sendo inevitáveis os conflitos de escolhas. Mesmo existindo funcionalidades na ferramenta da plataforma digital do PPA Participativo que permitiriam comentários às propostas, houve a escolha por focalizar na formulação e na votação de propostas. A troca argumentativa ficou prejudicada na plataforma, assim como observado nas plenárias estaduais em que apenas podiam ser apresentadas propostas. Não é simples resolver a equação: muitas pessoas, conversando sobre muitos temas em pouco tempo. De todo modo, há tecnologias digitais e sociais disponíveis e passíveis de serem criadas que fortaleçam a dimensão dialógica da participação social.
Por fim, cabe pensar quais os efeitos do processo participativo do PPA 2024-2027. É perceptível a atenção à devolutiva às pessoas participantes, considerando o esforço para publicizar a agregação de preferências e registrar os encaminhamentos de cada proposta elaborada ao longo do PPA Participativo, seja na plataforma, nas plenárias ou no fórum interconselhos. Dessa forma, foi dado encaminhamento ao que se decidiu coletivamente e, certamente, atitudes democráticas foram fortalecidas com as diferentes oportunidades de participação social.
De todo modo, em meio ao contexto político radicalizado, diante da necessidade de garantir a livre expressão de diferentes modos de fazer política, é necessário estimular intencionalmente práticas e valores democráticos. Não há dúvidas que há aprendizagens de atitudes democráticas em sujeitos que se envolvem com processos participativos. No entanto, levando em conta os esforços de mobilização empreendidos, a formação política precisa estar no centro da organização de cada atividade. Com o objetivo de estimular o exercício da cidadania ativa e não a hegemonia de determinados projetos políticos, por meio da valorização de saberes populares e da emancipação dos sujeitos, é possível a participação social ser mais educativa.
Com o PPA Participativo e tantos outros processos desencadeados por diferentes ministérios, é perceptível que a participação social voltou. No entanto, é possível que a participação social seja mais diversa, dialógica e educativa. Com respeito e consideração a todas aquelas pessoas que tornaram o inédito viável nesse primeiro semestre de 2023, cabe a reflexão crítica sobre as ações para que ocorra a reconstrução da política nacional de participação social.
Clóvis Henrique Leite de Souza é cientista político e professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás.