Foto: Divulgação/ Todavia

Obra de autora palestina banida ajuda a interpretar conflito


Adania Shibli foi cancelada da Feira do Livro de Frankfurt. Seu livro, ‘Detalhe menor’, pode ser encarado como uma chave interpretativa para o confronto entre Hamas e Israel

Em 15 de outubro, os organizadores do maior evento anual de literatura, a Feira do Livro de Frankfurt, anunciaram o cancelamento da homenagem que fariam à escritora palestina Adania Shibli. Em meio ao bombardeio de conteúdos sobre o confronto entre Israel e Hamas, a notícia pode se anunciar como um detalhe quase insignificante. Não há, é claro, como comparar as atrocidades que têm sido cometidas com tal episódio. Mas talvez o fato não seja tão inexpressivo assim.

O que aconteceu pode, minimamente, nos ajudar a enxergar nuances diante de um cenário tão brutal. E é a própria literatura que nos ajuda nesse exercício. Um esforço de interpretação literária que se proponha a ir além daquilo que está na superfície do texto costuma recorrer às chamadas chaves de leitura. Trata-se de pequenos detalhes, metáforas, formas de encadeamento de informações e imagens, entre outras estratégias de linguagem, capazes de revelar o que, além da história (ou da trama), há naquela obra.

Livro extrapola o universo da criação literária e se torna a publicação mais importante de uma autora que é banida de um evento internacional durante uma guerra que envolve seu povo

Da mesma maneira, se ampliarmos a lupa, podemos encarar a literatura (e também as outras artes) como chaves de interpretação para o mundo em que vivemos. Para além da realidade dos fatos (cada vez mais manipuláveis, é sempre importante frisar), a produção literária carrega verdades incontestáveis, pois é manifestação expressa da experiência simbólica do ser humano.

Ler um romance, portanto, é entrar em contato direto com um fragmento de humanidade. Especificamente no caso de narrativas históricas, essa amostra tem ainda outro componente: nos conta sobre a vivência de alguém ou de um povo em um determinado tempo, possivelmente em um lugar específico do planeta Terra.

Nesse sentido, o romance Detalhe menor (ed. Todavia, 2021), da palestina Adania Shibli, pode ser encarado como uma chave interpretativa para o confronto entre Israel e palestinos. E, mais especificamente, para a guerra sem precedentes que está agora em curso naquele território. A leitura ganha uma amplitude maior se levarmos em consideração as especificidades do que aconteceu com a escritora recentemente.

Embora aconteça na Alemanha, a Feira do Livro de Frankfurt é um evento de impacto global. Editores do mundo todo garimpam e, muitas vezes, se estapeiam para levar de lá potenciais sucessos de crítica e de venda. Não é exagero dizer: o que acontece ali dita parte importante do que veremos em destaque nas prateleiras das principais livrarias do Ocidente.

Indicado ao National Book Awards, nos Estados Unidos, e ao International Book Awards, o livro conta duas histórias que se passam no mesmo local (o território palestino ocupado por israelenses) em períodos históricos diferentes: a primeira, em 1949, logo depois da criação do Estado de Israel; a segunda não tem data exata, mas está já neste século.

No livro, a mais antiga é contada isoladamente, no primeiro capítulo, mas reaparece contida na seguinte, que compõe a segunda metade da obra. Além disso, o que acontece tanto dentro do romance quanto aqui fora, na vida real, se desdobra em um mise en abyme, ou narrativa em abismo, em uma tradução precária do francês. É quando histórias ou imagens surgem sucessivamente, uma encaixada na outra – mais ou menos o que acontece com as bonequinhas russas, que guardam duplos menores dentro de si.

A primeira história do romance é narrada em terceira pessoa. É uma narrativa metódica, detalhe por detalhe, pela qual sabemos o que acontece com o comandante de uma tropa de soldados israelenses durante uma ronda pelo território ocupado. Mais do que a organização dos homens, dos suprimentos ou do roteiro das rondas, está no foco do sujeito o próprio corpo: o agravamento de uma ferida causada pela picada de um inseto e os frequentes banhos que toma.

Até que os militares se deparam com o que parece ser um pequeno oásis: palmeiras-dum, terebitos e canas-do-reino, por entre cujos caules corria um filete de água. Ali, logo é descoberto também um grupo de árabes, de pé, imóveis ao redor de uma nascente, que rapidamente é aniquilado pelos israelenses. Nenhuma arma foi encontrada. Resta apenas um cão que late insistentemente e uma garota, que acaba sendo sequestrada, calada (sua boca está quase sempre tampada pela mão de um militar), estuprada e morta – não sem antes ser higienizada pelo comandante.

A segunda é narrada em primeira pessoa por uma mulher palestina cujo nome não sabemos. O texto também não nos permite saber muito sobre sua aparência, relações ou coisas do tipo. Somos informados, porém, que não tem nenhum entusiasmo pela vida. Revela que seu afã pelo trabalho se deve ao fato de que não é capaz de avaliar nada de maneira equilibrada, ou decidir o que deve ou não ser feito. Assim como o primeiro personagem, ela é cheia de manias. Também não suporta poeira, como a que foi espalhada sobre sua mesa depois que o Exército israelense bombardeou um edifício ao lado de seu trabalho onde três jovens estariam refugiados.

Sabemos ainda que tem o ímpeto de reparar nas pequenas coisas. Pois há quem veja nos detalhes menores, como a poeira na mesa do escritório ou o cocô na tela do quadro, o único caminho para se chegar à verdade, quando não a única prova conclusiva da sua existência”.

Depois de ler um artigo escrito por um jornalista israelense sobre o estupro da garota narrado na primeira história, ela percebe que o crime aconteceu exatamente 25 anos antes de seu próprio nascimento. Decide, então, saber mais sobre o evento. Para isso, entra em contato com o autor do artigo, em busca de mais informações e pistas.

O sujeito a trata com certo desdém e sugere que ela vá pessoalmente aos museus e arquivos do Exército israelense, que ficam em Tel Aviv e no noroeste do Neguev. Ela o questiona sobre se, sendo palestina, poderia entrar nesses lugares. Ele responde que não vê nenhum motivo que a impeça. E ela, então, afirma com ironia: Eu também não vejo nenhum motivo que me impeça, exceto minha carteira de identidade

Ainda assim, vai em frente com sua pesquisa. Para isso, porém, precisa trocar de documento com uma amiga, e então recorre a outro colega para alugar um carro e segue viagem por Israel. Ao longo do caminho, nos conta o que vê: colinas, palmeiras-dum e cães que latem insistentemente, assim como na primeira história, de 1949. Há ainda uma série de outros detalhes, como sua obsessão por observar o que há à esquerda e à direita, numa clara referência a orientações políticas.

A personagem nota também aquilo que não está mais lá. No caminho, recorre a um mapa que mostra a Palestina de 1948, ano da criação do Estado de Israel, onde estão marcadas cidades de vários colegas e conhecidos que não existem mais – algumas, inclusive, ela nem chegou a saber o nome. No lugar de 16 cidades citadas pela narradora e muitas outras, está agora o parque de nome Canadá. O lugar, de fato, existe. É uma espécie de parque Ibirapuera, um centro de entretenimento construído onde um dia foi a casa de milhares de pessoas que acabaram mortas pela ocupação.

Em nenhum momento a narradora se coloca de maneira ostensiva, rebelde ou mesmo renitente diante dos israelenses ou de Israel. Esse não é seu estado de espírito. Pelo contrário. Pelos seus olhos, somos conduzidos por um cenário de desolamento, uma terra devastada, de onde seu povo originário foi banido com método e insistência, assim como a sujeira do corpo do comandante que estuprou a menina em 1949.

Retomando a ideia das narrativas que se desdobram, partimos do estupro em 1949, que ganha amplitude na curiosidade da narradora da segunda história, que, por sua vez, dá origem ao romance. O livro, então, extrapola o universo da criação literária, se tornando a publicação mais importante de uma autora que é banida de um evento internacional durante uma guerra que envolve seu povo. Em todas essas histórias, há muitos detalhes coincidentes. Seja na experiência simbólica da autora, transferida para a criação literária, ou na realidade dos fatos, são sempre vozes palestinas, vozes femininas, vozes caladas. Não é uma interpretação tão complexa de se fazer.

Há, ainda, um detalhe menor que precisa ser registrado: até o fechamento deste texto, nenhum romance, escritor ou escritora israelense foi censurado ou banido de qualquer evento de grandes proporções.

Giuliana Bergamo é jornalista e mestre em literatura e crítica literária pela PUC-SP. Pesquisa a construção de personagens femininas da ficção e da não-ficção.

Os artigos publicados no nexo ensaio são de autoria de colaboradores eventuais do jornal e não representam as ideias ou opiniões do Nexo. O Nexo Ensaio é um espaço que tem como objetivo garantir a pluralidade do debate sobre temas relevantes para a agenda pública nacional e internacional. Para participar, entre em contato por meio de ensaio@nexojornal.com.br informando seu nome, telefone e email.

Todos os conteúdos publicados no Nexo têm assinatura de seus autores. Para saber mais sobre eles e o processo de edição dos conteúdos do jornal, consulte as páginas Nossa equipe e Padrões editoriais. Percebeu um erro no conteúdo? Entre em contato. O Nexo faz parte do Trust Project.

Em alta