Depois de enfrentar quatro anos de grotesca ânsia golpista, a Constituição Federal chega, enfim, ao seu 35º aniversário. Jamais o texto constitucional vira tão de perto o caminho maldito alertado por Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, quando de sua promulgação em 5 de outubro de 1988: “A Constituição certamente não é perfeita. (...) Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da pátria”.
No 8 de janeiro de 2023, em meio à destruição generalizada, traidores da pátria furtaram e tentaram rasgar uma réplica da Constituição presente no Supremo Tribunal Federal. Nada mais condizente para quem sequestra e tortura a noção de patriotismo. Nada mais análogo ao que o mentor da turba, Jair Bolsonaro, fez não com um exemplar físico, mas com o Direito Constitucional brasileiro.
Celebrar e proteger a Constituição nunca foi tão urgente. Porém, é igualmente necessário o exercício de compreensão, em perspectiva histórica, de como redundamos em um Brasil dilacerado pela extrema direita, de como um projeto político autoritário e anticonstitucional chegou ao poder (e nele só não continuou por um triz). Para essa reflexão, não basta o enaltecimento da “Constituição Cidadã”. É preciso examinar o período da Nova República, incluindo a própria Constituinte de 1987-1988.
Diferentemente do que o magistral discurso de Ulysses sugere, a Constituinte esteve longe de ser só consenso. O próprio epíteto “Constituição Cidadã” emergiu não de uma consagração uníssona, mas de um embate, em julho de 1988, entre o presidente José Sarney e a Constituinte. Em rede nacional de rádio e TV, Sarney acusou o texto constitucional, então em sua fase final de redação, de ser fiscalmente irresponsável, tornando o país “ingovernável”. Guimarães respondeu valorizando as contribuições do projeto da Constituinte para a justiça social, o federalismo e a cidadania, empregando o apelido que veio a se tornar indissociável da Constituição.
A amplitude dos temas debatidos na Constituinte e a miríade de agentes sociais nela envolvidos levou José Rodrigo Rodriguez a constatar que “praticamente todos os conflitos sociais brasileiros estão expressos no texto constitucional” e a argumentar que o texto de 1988 é uma “constituição sem vencedores”. Os trabalhos de Ozias Paese Neves, Rodrigo Mendes Cardoso, Carlos Michiles e Francisco Whitaker demonstraram a pletora de movimentos sociais que lutaram por direitos e se articularam para disputar a redação do texto constitucional por meio do instrumento das emendas populares. Maria Helena Versiani revelou a imensidão de cartas enviadas por cidadãs e cidadãos à Constituinte. A palavra de ordem era participação. Ao mesmo tempo, a Constituinte também esteve sujeita às forças do governo Sarney e de sua composição em grande medida conservadora e fisiológica, que deu certidão de nascimento ao chamado centrão.
A Constituinte presenciou mazelas atuais, como retórica anti-indígena e ameaças golpistas de militares
A Constituinte foi um experimento de alta voltagem democrática. De fato, houve várias derrotas sob a ótica progressista em 1988: regressividade tributária, limitação de direitos a trabalhadoras(es) domésticas(os), ausência de previsão contra discriminação por orientação sexual, relativa timidez dos mecanismos de reforma agrária, manutenção da estrutura militar das polícias ostensivas etc. Esses malogros, bem como o fato de o órgão ter sido um congresso constituinte (em vez de uma constituinte exclusiva), não invalidam “o potencial emancipador inscrito na Constituição”, observa o professor e pesquisador Samuel Barbosa.
Contudo, considerando a profusão de reivindicações, projetos e setores sociais que se fizeram presentes em sua elaboração, surge uma indagação à luz da experiência brasileira destes últimos anos: teria a ultradireita também participado da Constituinte, mesmo que de maneira envergonhada, em um contexto que o rótulo de direita era evitado por evocar a ditadura?
A resposta é afirmativa. Se bem examinada a massa amorfa do centrão de 1988, pinçam-se elementos com posicionamentos extremados de direita, cujo alcance social foi maior e cuja postura foi mais altiva do que geralmente se imagina. O mais estridente foi Fidélis Amaral Netto, do PDS do Rio de Janeiro. Antigo lacerdista e íntimo das cúpulas da ditadura militar, tendo produzido reportagens televisivas no típico tom ufanista do regime, o jornalista teve atuação quase monotemática nos primeiros anos da Nova República: foi a cara da campanha pela pena de morte no Brasil. Apelando para as crescentes preocupações em relação à segurança pública na década de 1980, Amaral Netto foi um dos responsáveis por catapultar o populismo penal à agenda política do país, da qual nunca mais saiu.
As duas propostas de Amaral Netto (implementação da pena de morte para latrocínio, sequestro e estupro seguidos de morte; ou realização de um plebiscito sobre a adoção dessa pena) foram vencidas. A Constituição proibiu a pena de morte, abrindo exceção apenas para um caso remoto, conforme prevê seu artigo 5º, inciso XLVII, alínea a): o de crime de traição cometido durante guerra de agressão sofrida pelo Brasil. A despeito do insucesso na assembleia, as demandas pela implementação da pena capital tinham considerável capilaridade. Em pesquisa feita pelo instituto Ibope em 1987, que perguntou à população suas três prioridades na Constituinte, a pena de morte foi a bandeira mais indicada como primeira opção. Na sociedade civil, foram fundadas associações para a defesa da pena de morte. O fascínio pela pena de morte se inseriu na ascensão de uma nova direita no Brasil entre as décadas de 1980 e 1990, conforme diagnóstico do sociólogo Antonio Flávio Pierucci.
Amaral Netto foi uma figura relevante nesse cenário. Após a Constituinte, sua eleição por mais duas legislaturas (até sua morte, em 1995) para deputado federal pelo PDS e pelo PPR (atual PP) referendou a existência de uma demanda eleitoral para visões associadas à ultradireita. Mais do que isso, o parlamentar se notabilizou por um estilo belicoso no debate público. Presença constante na mídia, desferia ataques rasteiros contra entidades de defesa de direitos humanos, como a Anistia Internacional e a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, fundada por Dom Paulo Evaristo Arns. O sensacionalismo de Amaral Netto ajudou a insuflar a retórica de direitos humanos como “privilégios de bandidos”, slogan já poderoso na época, conforme evidenciou a antropóloga Teresa Caldeira.
Liguemos os pontos. Quem também foi eleito, a partir dos anos 1990, para várias legislaturas na Câmara dos Deputados pelo mesmo PP fluminense? Quem, como Amaral Netto, defendeu a pena de morte e um plebiscito para sua adoção? Quem mais surfou na exposição de bate-bocas e grosserias na política brasileira das últimas décadas, mesmo sem ter nada da erudição do ex-repórter? Quem tem destilado mais ódio e mentiras contra a ideia de direitos humanos? Menos lembrado do que Enéas Carneiro, Amaral Netto é figura incontornável para compreender a trajetória política de Jair Bolsonaro, seu amigo.
O populismo penal não foi a única ideia cara à ultradireita contemporânea que circulou na Constituinte. Amaral Netto e outros encampavam a ladainha, que nos acostumamos a ouvir recentemente, de que os direitos dos povos indígenas seriam um empecilho ao suposto interesse nacional na exploração econômica predatória do ambiente. Como o discurso sobre a pena de morte, as teorias conspiratórias contrárias aos direitos indígenas ecoaram para além da assembleia. Dizia-se que organizações indigenistas como o Cimi (Conselho Missionário Indígena) integrariam uma conspiração para “internacionalizar a Amazônia” e impedir as perspectivas de mineração de cassiterita na terra Yanomami. As fake news chegaram a ser divulgadas em denúncias de primeira página por jornais prestigiosos como o Estadão e o Jornal da Tarde, cujo editorial, orgulhosamente etnocêntrico, chegou a classificar as culturas indígenas como “invenção”. Uma CPI foi aberta e concluiu pela inconfiabilidade das provas apresentadas pelos jornais (apócrifos, os documentos é que podem ter sido... inventados).
A Constituinte também trouxe a novidade da maior representação e visibilidade de cristãos evangélicos no Parlamento (passando de 17 deputados federais em 1983-1987 para mais de 30 em 1987-1991), em um momento de expansão do televangelismo. Apesar de ser diverso, reunindo progressistas como Benedita da Silva (PT) e Lysâneas Maciel (PDT), o grupo se alinhou majoritariamente à direita em questões econômicas. Vozes evangélicas (assim como católicas) na assembleia prenunciaram as guerras culturais de nosso tempo, buscando legitimar a homofobia com alegações religiosas, opondo-se ao direito ao aborto e até mesmo ao divórcio.
Outro paralelo entre a Constituinte e a atualidade diz respeito às chantagens militares contra a democracia. Como mostra o historiador Marcus Vinícius Assis da Costa, nos primeiros anos da Nova República, militares herdeiros da chamada linha-dura criaram uma atmosfera de risco de um novo golpe, inquietação que foi externada por constituintes. Os temores se avolumavam em situações como a reação do ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, ao projeto do relator Bernardo Cabral que retirava a hipótese de Garantia da Lei e da Ordem das atribuições constitucionais das Forças Armadas. Começaram boatos de um golpe militar contra a Constituinte. Conquanto fossem exagerados, os receios obrigaram um recuo de Cabral.
Décadas depois, em entrevista ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho, Leônidas admitiu a ingerência, dizendo que “não deixaria passar” um projeto de Constituição que se abstivesse de atribuir às Forças Armadas a garantia da ordem interna. Ora, trata-se da mesma escola de intimidação antidemocrática que vimos em abril de 2018, quando outro comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, ameaçou o Supremo Tribunal Federal na véspera do julgamento do habeas corpus de Luiz Inácio Lula da Silva.
As pautas da pena de morte e de conservadorismo de costumes, as narrativas anti-indígenas e as chantagens castrenses de 35 anos atrás ilustram como os problemas do Brasil com a extrema direita civil e militar não são apenas de hoje. Possuem antecedentes históricos muito mais recentes do que o integralismo dos anos 1930 e dos anos de chumbo da ditadura de 1964. Por isso, comemoremos, sim, a Constituição, mas olhemos para o fenômeno da Constituinte como um todo: seja no valioso legado democrático que produziu, seja nas suas beiradas, por onde o radicalismo de direita também se anunciava.
José Bento Camassa é bolsista do CNPq, mestre e doutorando em História Social pela USP (Universidade de São Paulo), com pesquisa sobre a Constituinte brasileira de 1987-1988 e a Constituinte colombiana de 1991.