Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

Reorganização partidária: os efeitos das mudanças


O Brasil é um país heterogêneo, com muitas clivagens sociais. O sistema eleitoral proporcional e o multipartidarismo buscam responder a demanda por representação

Mais de três décadas já se passaram desde que a Constituição foi promulgada e a disputa em torno das regras do jogo continua no centro do debate político. No meio da disputa emergiram raros consensos, entre os quais o de que temos um número excessivo de partidos, e isso está prejudicando a capacidade do sistema de produzir um bom governo. A grande oferta de siglas no mercado político pode ser indício de pluralismo democrático, mas tem como “trade-off” aumentar o custo da decisão política e da formação do governo.

O Brasil é um país heterogêneo, com muitas clivagens sociais e o sistema eleitoral proporcional e o multipartidarismo que dele deriva buscam responder a esta demanda por representação. Reduzir artificialmente este pluralismo é arriscado, mas exacerbá-lo expõe a representação a outros riscos, como o da ingovernabilidade. “As regras de representação e o sistema partidário expressam essa pluralidade; não a podem regular, simplificando-a ou homogeneizando aquilo que é estruturalmente heterogêneo”, segundo Sérgio Abranches. O fortalecimento do controle do poder Legislativo sobre a agenda política e o Orçamento foi paralelo à redução dos poderes delegados ao Executivo em 1988. Os custos de formação da coalizão de governo cresceram com a perda de poder do Executivo, o que foi agravado pelo aumento do número de “players” na arena legislativa. A alta fragmentação dificultou as negociações entre o Legislativo e o Executivo, mas também entre lideranças do próprio Legislativo.

A grande oferta de siglas no mercado político pode ser indício de pluralismo democrático, mas pode aumentar o custo da decisão política e da formação do governo

A solução para o problema da alta fragmentação partidária, que já incomodava também os líderes no poder Legislativo veio do Senado, no apagar das luzes do impeachment de 2016. A aprovação do texto final da Emenda Constitucional nº 97/2017 encontrou oposição apenas do PSOL e da Rede, que invocaram o argumento de Ayres Britto, no STF (Supremo Tribunal Federal), que poucos anos antes havia enterrado a cláusula de barreira prevista na Lei Orgânica dos Partidos como antidemocrática. A mudança na Constituição proibiu as coligações nas eleições proporcionais e restringiu o acesso ao fundo partidário e à propaganda gratuita em rádio e televisão aos partidos que atingirem a cláusula de desempenho progressiva.

O Brasil assistiu à multiplicação de partidos desde 1979, com o fim do bipartidarismo imposto pela ditadura militar. Na eleição de 1982, cinco partidos chegaram à Câmara, na eleição seguinte, em 1986, já contávamos com 12 partidos. Nas eleições de 2018, passamos para 30 partidos com deputado federais eleitos, sendo que 31 elegeram deputados estaduais em alguma das mais de 1.000 vagas nos estados. Após o fechamento da janela partidária, em abril de 2022, sobraram 23 partidos na Câmara. A concentração das cadeiras nos 10 maiores partidos passou de 71%, na eleição de 2018, para 85%

Gráfico mostra a fragmentação partidária na Câmara Federal

O Brasil é o país com o maior número de partidos entre as democracias existentes, contando com 31 siglas registradas no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) em julho de 2022. As regras oferecem poucas barreiras para criação de novas agremiações, o que não impediu que o presidente Bolsonaro fracassasse na tentativa de registrar seu próprio partido, o Aliança pelo Brasil. Como nem todos os partidos têm a mesma importância, os cientistas políticos costumam se referir ao número de partidos efetivos para medir o grau de fragmentação do sistema partidário. O indicador praticamente dobrou do início do segundo governo FHC para o segundo mandato de Dilma.

O efeito das mudanças nas regras tem incentivado a reorganização partidária, e já puderam ser sentidos nas eleições de 2020, com a redução do número de partidos que não puderam mais “aproveitar” os votos da coligação para eleger representantes. Após a eleição, os partidos que não atingiram a cláusula de desempenho correram atrás da sobrevivência política para manter o acesso ao financiamento público, o que levou a incorporação do PRP pelo Patriota; do PPL pelo PCdoB; e do PHS pelo Podemos, todas em 2019. Após a janela partidária e a criação do União Brasil, com a fusão do PSL e do DEM, ficamos com 11,7 partidos efetivos antes do pleito de 2 de outubro de 2022.

Não tivemos provavelmente nenhuma eleição com a mesma regra desde a redemocratização. Na eleição deste ano não será diferente. O poder Legislativo aprovou a possibilidade da criação de “federações partidárias”, contornando a proibição das coligações em eleições proporcionais, e também criando uma cláusula de desempenho para que o partido dispute as vagas distribuídas pelas “sobras”. A aprovação das federações partidárias deu sobrevida às siglas menores e a possibilidade de não serem excluídas do Fundo Partidário - neste ano o PCdoB e o PV se federaram ao PT, o Cidadania ao PSDB, e a Rede ao PSOL.

Após a eleição, o sarrafo para acessar o fundo partidário e a propaganda gratuita em rádio e TV aumenta, junto com a pressão por mais fusões e concentração. Os dois critérios alternativos passam de 1,5% dos votos válidos para 2% em 1/3 dos estados, ou de nove para 12 deputados eleitos no mínimo, em 1/3 dos estados. Neste ano, o Fundo Partidário será de R$ 574 milhões distribuídos entre 24 partidos, e o Fundo Eleitoral de R$ 4,96 bilhões. Diferente do primeiro, restrito aos partidos que superam a cláusula de desempenho, 2% do fundo eleitoral é dividido de forma igualitária entre os partidos com registro no TSE. O sentido da mudança é positivo e beneficiará o país fortalecendo os partidos e reduzindo as siglas de aluguel ou pouco representativas, a menos que uma nova mudança legal rearranje novamente o tabuleiro político.

Alexandre Sampaio Ferraz é economista e doutor em ciência política. Consultor do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).

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