Quais seriam os elementos tóxicos que degradam o ambiente dos negócios? Quando me deparei com essa pergunta, uma resposta imediatamente me veio à mente: os contratos.
Seja qual for a natureza da relação empresarial estabelecida, entre empresas ou entre essa e o consumidor final, esses documentos são sempre portadores de ambiguidades, desconfiança, medo, dúvidas e distanciamento. Por desconhecimento mútuo, os envolvidos acabam buscando proteção através de cláusulas legais de caráter punitivo, vestidas com uma linguagem jurídica.
Exemplo disso é o que aconteceu recentemente com o influenciador Iran Ferreira, conhecido como Luva de Pedreiro. O jovem admitiu que assinou o contrato com o ex-empresário sem ler as cláusulas. Uma delas citava uma multa de R$ 5 milhões no caso de rompimento do contrato antes de quatro anos de permanência.
Por inexperiência com contratos, Iran pode não ter se dado conta das desvantagens que o acordo trazia. Isso é um retrato do que acontece em muitas das relações contratuais: nem todos os envolvidos têm iguais condições de informação, conhecimento e capacidade para verificar possíveis riscos do negócio.
Ainda que o jovem tenha falhado ao assinar um documento que não leu, a pergunta é: se ele tivesse lido o contrato, teria entendido o que ali estava afirmado?
Todo cliente precisa ler e compreender o que está posto em um contrato. Para isso, precisamos rever a forma e a linguagem dos documentos legais. Afinal, os contratos devem ser redigidos para os usuários – e não para os operadores do direito.
A falta de compreensão de um contrato elimina a possibilidade de autonomia, protagonismo e dignidade dos indivíduos em momentos relevantes de suas vidas. No negócio, essa lacuna se traduz em procrastinação, ações mal executadas e descumprimento contratual.
Existe um mito de que os contratos precisam ser sempre formais e rebuscados. Isso não é verdade: até mesmo uma história em quadrinhos poderá se tornar um contrato válido.
Na lei, Artigos 104 e 107 do Código Civil / Artigo 784 do Código de Processo Civil, existem apenas três pontos a serem observados: agente capaz, objeto lícito e forma lícita. Ou seja, as cláusulas e as respectivas obrigações de determinado contrato são alteradas conforme a vontade e a aceitação dos envolvidos. Não existe uma linha sequer que seja obrigatória aos olhos da lei.
‘O caso do Luva de Pedreiro expõe um retrato do que acontece em muitas das relações contratuais.’
Isso quer dizer que os contratos são nada mais do que acordos de vontade. Desse modo, no momento em que dois ou mais indivíduos acordam algo, isso é um contrato.
Ao tornarmos os contratos acessíveis, geramos um ambiente de transparência para que os clientes possam compreender o que estão assinando e colocar em prática o que foi combinado. Isso permite que os acordos sejam revistos sempre que necessário e que os próprios indivíduos possam lidar com os seus conflitos, criando mecanismos internos de conciliação.
Sinto que, como advogada, tenho a missão de quebrar esse ciclo de obscuridade. Inúmeras vezes fui intérprete de um contrato ou outro documento legal para um cliente, amigo ou parente, que, independentemente do grau de escolaridade, não compreendeu o que estava escrito.
Percebo haver uma ideia amplamente difundida de que o grau de dificuldade da leitura dos documentos legais vem de sua suposta necessidade de complexidade, ou, até mesmo, de um possível indicativo de qualidade. Criando inclusive a convicção de que para ler um documento legal o leitor deve ostentar certa erudição e alto grau de letramento.
Esta concepção é muito equivocada. A complexidade é atributo inexorável da vida, mas não dos documentos legais.
Quaisquer que sejam os documentos ou contratos, eles se destinam às pessoas e, se elas não podem compreendê-los, o problema está no papel e não nelas.
Minha experiência revela que a simples mudança de perspectiva na criação desses documentos é capaz de solucionar grande parte do problema. Pouco importa se a transação é entre organizações ou entre empresas e pessoas. São as pessoas as responsáveis pela execução de qualquer contrato. Quando uma pessoa tem dificuldade de compreender as reais obrigações assumidas em um contrato, esse custo recai sobre o negócio.
Os advogados também não estão imunes à dificuldade de compreensão dos documentos legais. Sobrecarga de informações, interpretações contraditórias, pressão e o desgaste mental desses profissionais também oneram os negócios – que passam a precisar de intérpretes para suas transações.
Documentos legais complexos custam dinheiro e não estão a serviço da prosperidade dos negócios, uma vez que levam mais tempo para serem revisados, explicados, compreendidos, assinados e executados. Sem mencionar o alto custo e risco de disputas que os envolve.
Todas as pessoas devem ser capazes de compreender os contratos, a fim de que esses documentos possam ser reais instrumentos de sustentação relacional e que nós, advogados, possamos exercer nossa função social de agentes propagadores de justiça – ao invés de meros intérpretes de juridiquês.
Fernanda Guerra é advogada e idealizada da SER Consultoria.