Foto: Henrique Freire/Governo do Rio de Janeiro/Agência Brasil

Da falha ao furto: a criminalização do colapso dos trens 


Responsabilizar o crime organizado pela precariedade histórica dos serviços ferroviários é criar uma cortina de fumaça

Um dos maiores legados da pandemia de covid-19 no Rio de Janeiro foi a intensificação da crise do serviço ferroviário metropolitano. Como é próprio de situações de crise, houve uma profusão de teorias acerca das causas deste fenômeno. A primeira partiu de uma característica institucional das políticas de transporte urbano no país: o fundo de financiamento destas economias é constituído pela tarifa paga pelo usuário. No Rio de Janeiro, não há qualquer participação do fundo público no custo. Assim, com a diminuição da circulação de passageiros, em alinhamento com a política de distanciamento social, teria ocorrido uma queda da arrecadação tarifária e, por conseguinte, a impossibilidade da manutenção da oferta nos patamares anteriores à pandemia. Essa foi uma das justificativas para o desaparecimento de serviços.

Nos trens operados pela concessionária Supervia, além da tentativa de elevar as tarifas para R$ 7, houve o fim do trem expresso do ramal Santa Cruz, em junho de 2020, que aumentou em 1h20 o tempo de viagem dos moradores da Zona Oeste e de municípios próximos. Contudo, neste caso, a justificativa da Supervia foi além do problema da redução de 50% no número de passageiros. Estaria ocorrendo também um aumento significativo do furto de cabos de cobre de sinalização.

É fato que houve um crescimento nos registros de furto dessa natureza Brasil afora. O preço do quilo do cobre no mundo sofreu um forte aumento nos últimos dois anos, promovendo reconfigurações no mercado de compra e venda destes produtos. Essa situação foi além dos trens fluminenses e também registrada no furto de canos de cobre do fornecimento de gás natural, de quadros de energia elétrica e da fiação vinculada aos serviços de internet e telecomunicação pelos postes da cidade.

A narrativa da Supervia, todavia, não parou por aqui. Para além de conectá-la às nem tão novas temporalidades inauguradas pela pandemia com a crise aguda vivida no Rio, a concessionária tem tentado cotidianamente performar outra temporalidade a partir da ressignificação das falhas operacionais dos trens. Em abril de 2022, o presidente da Supervia chegou a uma das reuniões da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) dos trens na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro), com um cabo de cobre em mãos para tentar dar concretude à posição da empresa. Junto a isto, ele se apoiou em dados de metros de cabos furtados e de ocorrências, problematizados como incorretos ou falhos por algumas das pessoas presentes. Seu argumento foi mais ou menos assim: no passado, estes casos já existiam, mas eram fruto da atuação de alguns “drogados”, o que não levava a um dano relevante; atualmente, todavia, não são mais os “cracudos” os operadores desse mercado, mas um reconfigurado crime organizado, para o qual a destruição da infraestrutura ferroviária é fonte de lucro. Eis então que seria explicada a agudização das falhas nos serviços.

Mais do que investigar para onde vão estes cabos, me interessa problematizar como esses fatos se tornam públicos, a reboque de qual narrativa e seus efeitos. A performatividade desta narrativa e a sua repetição vão produzindo a progressiva indiferenciação entre as fronteiras do que seriam os casos de falha de manutenção, de precarização da operação ou furto de cabos. Algo que é operado e visível também na forma pela qual os roubos têm sido registrados pela concessionária. Muitos deles são documentados e enviados para a Polícia Civil apenas dias (ou até semanas) depois do ocorrido. Dessa forma, temos então o seguinte sentido na publicização do furto de cabos: a criminalização do colapso. Fora da responsabilidade da Supervia, o problema da infraestrutura ferroviária torna-se um problema de segurança pública. A solução da narrativa é conhecida, voltamos ao diagrama da “violência urbana”. A principal alternativa apontada por alguns representantes da segurança pública naquele dia de CPI foi alterar o artigo pelo qual os ladrões presos passariam a ser autuados. A ideia seria fazê-lo não mais com base no Art. 155, mas no Inciso IV do Art. 260 do Código Penal, que versa sobre a perturbação e o perigo de desastre ferroviário. Em teoria, isto os levaria a ficar preso por mais tempo.

Historicamente, se ganha dinheiro às custas da corrosão física e mental dos corpos de gente negra e pobre

Há, entretanto, outro impacto dessa narrativa: a invisibilização do que venho trabalhando em minhas pesquisas como “violência infraestrutural”. Ao remeter os males dos serviços ferroviários a uma temporalidade emergente na pandemia, esta narrativa escanteia uma lógica marcante na produção desta infraestrutura na história do Rio. Refiro-me aqui à vinculação entre acumulação e violência. Talvez Lúcio Kowarick a chamaria de “espoliação urbana”, como o fez para fazer referência à dilapidação dos trabalhadores pela precariedade de serviços públicos da urbanização em fins dos anos 1970. Pessoalmente, prefiro colocá-la como violência. Uma violência produzida em uma economia política urbana particular, e não “urbanização” em geral como nos anos 1970, direcionada a corpos específicos, que racializa, e é, portanto, racista.

Responsabilizar o crime organizado pela precariedade histórica dos serviços ferroviários, no qual tem sido publicizada a sistematicidade de morte, ferimentos e mutilações, é jogar cortina de fumaça no seguinte arranjo: se há um crime organizado ganhando dinheiro destruindo a malha ferroviária, na economia dos trens urbanos, historicamente, se ganha dinheiro às custas da corrosão física e mental dos corpos de gente negra e pobre. Neste caso, com a indiferenciação entre falha e furto, atualiza-se o modo de gestão da acumulação. Uma estratégia articulada à precária regulação pública sobre o cumprimento do contrato da concessão por parte da agência pública, a Agetransp.

Para os usuários, a associação do furto de cabos ao crime organizado como explicação para os males da Supervia é difícil de acreditar. Um ceticismo assentado na vivência. Em suas elaborações, talvez a temporalidade performada seja mais longa, perdurável e repetitiva. Algo mais próximo a aquela narrada por Solano Trindade já em 1944 em poesia sobre o trem. “Trem sujo da Leopoldina, correndo correndo, parece dizer, tem gente com fome, tem gente com fome”.

Marcos Campos é pós-doutorando no International Postdoctoral Program no Cebrap, doutor em Sociologia pelo IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e pesquisador associado no Grupo CASA. Em sua pesquisa atual, investiga as relações entre infraestrutura de transporte metropolitano e as reconfigurações do conflito urbano no Rio de Janeiro, a partir da longa e pouco estudada história de mortes, ferimentos e mutilações ocorridos nas estradas de ferro na região metropolitana do Rio de Janeiro.

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