Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil - 29.JUL.2022

Fazendo o dinheiro da passagem: Lula 3, o passe-livre e a fome


Estratégias para compor a passagem colocam em risco a dignidade das pessoas nas mais diversas situações

Levou 10 anos para que a principal demanda das jornadas de junho de 2013, a tarifa zero, chegasse ao governo federal. A bem da verdade, foram mais de 30 anos desde sua primeira aparição na agenda pública, na cidade de São Paulo, durante o governo Luiza Erundina, em 1991. A implementação do passe livre em mais de 200 cidades e em quase todas as capitais durante as eleições deste ano demonstra que o debate sobre mobilidade adquiriu um outro estatuto no país. Como noticiou o jornal Folha de S.Paulo, em 27 de novembro de 2022, está em pauta no grupo de transição do governo federal a proposta do passe livre para o transporte público no Brasil.

Pretendo, com este texto, contribuir com este debate, apresentando um enquadramento para a política pública e ressaltando alguns dos desafios que o governo Lula 3.0 terá, em particular, com o retorno da fome no Brasil. Trago alguns dos aprendizados das etnografias das infraestruturas urbanas, campo de estudos com o qual venho dialogando nos últimos anos, para refletir sobre os sentidos da gratuidade dos transportes públicos de uma maneira qualitativa. Em outras palavras, apresento uma reflexão que está pautada na forma como, efetivamente, as pessoas vivenciam a tarifa em seus cotidianos, indo além, portanto, de uma leitura tão somente quantitativa, frequentemente centrada no problema do alto custo para as pessoas racializadas e de baixa renda.

Nos estudos sobre infraestruturas urbanas, há alguns pontos já consensuais que fundamentam grande parte das discussões. O primeiro deles é o de que a realização de certos atos, como acender a luz do quarto, requer processos contínuos de manutenção, reparação e normalização de infraestruturas. As condições em que essas ações ocorrem produzem, simultaneamente, desigualdades de acesso e a naturalização dessas mesmas desigualdades.

Um exemplo: para algumas pessoas, o ato de abrir a torneira para tomar um banho quente é, de fato, vivido como uma ação banal, que não demanda cálculos ou reflexões sobre a sua realização. Para outras, as mesmas ações só se tornam possíveis através de um outro conjunto outro de ações altamente custosas e de relações.

Quanto mais incluímos no quadro diferenças de gênero e raça para pensarmos a experiência urbana, maior é a probabilidade do uso do corpo como uma necessidade para o acesso às infraestruturas. Por exemplo, as varizes nas pernas das mulheres negras e periféricas que, durante décadas, não tiveram escolha a não ser viajar duramente de pé e no aperto no transporte público durante horas diariamente para chegar aos seus espaços de trabalho.

Indo além, se quisermos entender os efeitos das infraestruturas urbanas na vida cotidiana e pensar em alternativas de políticas públicas, também precisamos compreender como as pessoas fazem usos das infraestruturas a partir de suas próprias palavras e práticas, não raramente contrariando e desafiando a forma como burocracias e o setor privado planejaram seus usos.

Em minha tese de doutorado, foi desta maneira que abordei a relação entre a tarifa – aqui, um conceito técnico –, e a forma como as pessoas fazem referência a ela em seu cotidiano, o dinheiro da passagem, num esforço de desnaturalização da banalidade de certas ações, como cozinhar feijão no fogão ou higienizar as mãos com água e sabão para evitar a disseminação de um vírus.

A “passagem”, tal como experienciada pelas pessoas pobres e negras, não é algo gerido individualmente, mas de modo coletivo.

Para as pessoas mais pobres e racializadas, pagar por uma condução não é uma ação irrefletida ou desimportante. Pelo contrário, essa situação é vivenciada como um evento. Isso significa dizer que ela insere no dia a dia a potencialidade de que a vida possa vir a mudar qualitativamente de situação (por vezes, de maneira dramática) a depender de como se resolve a necessidade de dispender quatro, cinco ou seis reais para poder atravessar uma catraca. É preciso dizer: essas considerações não são restritas aos momentos de lazer, elas são cotidianas.

A existência da tarifa organiza a relação das pessoas com o tempo, o presente e o futuro. Essa pode desarticular relações, possibilitar ou demandar outras, envolver diferentes antecipações de riscos físicos, permitir o ganho de dinheiro e implicar a necessidade de grandes deslocamentos a pé. E, em outras situações, pode vir a determinar se haverá ou não comida na mesa.

Uma imagem que eu penso ser capaz de dar conta do ritmo com que esses eventos atuam no cotidiano é a de um mar agitado. O que fazer a cada vez que uma onda nova se aproxima? Diferente da conta de água, de luz, do botijão de gás, todo dia é preciso pegar uma condução.

Eu chamo isso de “eventualidade” da tarifa. No dia a dia, ela produz a necessidade de realização contínua de diferentes cálculos momentâneos, baseadas em um saber compartilhado e acumulado pelas pessoas, às vezes passado entre gerações, acerca das possibilidades que a própria cidade apresenta para se fazer a passagem.

Um destas estratégias limites, por exemplo, é a realidade das pessoas que têm casa, mas que dormem na rua durante a semana por não terem condições de arcar financeiramente com a tarifa para voltar para casa. Outro exemplo é o calote no ônibus ou no trem para poder, futuramente, pagar a passagem do metrô em uma viagem de distância maior ou poder comer algo na volta para casa.

Ocasionalmente, vínculos com conhecidos, vizinhos, amigos e parentes são ativados para poder solucionar o problema da tarifa, envolvendo empréstimos, ajudas, favores ou doações. Por vezes, as pessoas saem de casa sem saber como irão voltar. Muitas vezes, quem viaja, não foi quem pagou a tarifa. Pequenas notas e moedas que fazem a passagem precisam circular entre as pessoas antes do pagamento na catraca. Em outras situações, as pessoas não saem de casa em busca de emprego por não terem como pagar a passagem.

A circulação de cartões de crédito de transportes na família é outra estratégia, como a mãe que dá seu bilhete único para a filha poder pegar uma condução e a neta que passa junto da avó na catraca da estação de trem com o cartão de gratuidade desta. Há também o caso do amigo que empresta algum trocado para o outro para que ele não fique sozinho na rua na volta para casa de noite, ou do jovem que pede uma carona para o motorista de ônibus na volta para casa. Saber onde são os locais onde se é mais fácil dar calote também é importante.

A “passagem”, tal como experienciada pelas pessoas pobres e negras, não é algo gerido individualmente, mas de modo coletivo. Ela leva à interdependência entre as pessoas. Afirmo isso sem qualquer romantização dessa situação. Há conflito, muito conflito em torno disso. Aliás, essas formas de se fazer a passagem constroem relações entre as pessoas: um pedido de ajuda inesperado para se pegar uma condução ora assume papel de “a gota d’água”, gatilho para o transbordar de sentimentos mal resolvidos e acumulados de relações e suas sedimentações ao longo dos anos.

Por vezes, tais estratégias para compor a passagem colocam em risco a dignidade das pessoas nas mais diversas situações, como no caso do homem que se vestia como funcionário da empresa de ônibus para poder entrar por trás no transporte, mas que, tão logo foi visto por conhecidos, deixou de fazê-lo por vergonha. O não-pagamento da tarifa não é vivido de maneira impessoal ou distanciada. As pessoas têm de lidar com o impacto de moralidades que estão vinculadas a essa multiplicidade de rotinas para gerir a necessidade de pagamento das tarifas.

Estas mesmas práticas podem levar a punição e criminalização, quando se envolvem as formas de controle estatal da imensa quantidade de dinheiro que circula pela infraestrutura de transporte.

O que é interpretado pelos gestores das infraestruturas como o pagamento de uma tarifa situada, homogênea, isolada e individualizada, na realidade, é atravessada por relações diversas que transcendem a situação da catraca e que ressignificam seus sentidos e modulam tanto as formas de circulação de dinheiro entre as pessoas como entre as pessoas e a infraestrutura de transporte.

Não basta apontarmos que a tarifa é cara, mas também como este fato organiza a vida. Seu efeito mais geral é o da persistente precarização. Problematizar a tarifa desta maneira, acredito eu, reorganiza a importância do passe livre como política pública no Brasil. Mais do que isso, eleva para outro patamar a percepção da perversidade, o classismo e o racismo, do arranjo de financiamento das infraestruturas de transportes. Torna-se legível, então, como um aumento de tarifa pode vir a ser vivido como “a gota d’água”, como nos famosos “quebra-quebra”.

No atual contexto de alta de preços e desemprego, a tarifa é produtora da fome. Manter a própria casa, acessar atividades que ofertem renda, garantir os alimentos diários da casa, levar familiares ao serviço de saúde ou ir à escola são circulações completamente conectadas pela tarifa de transportes.

Junto ao fortalecimento das políticas de assistência social, da retomada das políticas de segurança alimentar e da valorização do salário-mínimo, o passe livre pode ser mais um dos aliados para que o Brasil nunca mais imagine voltar a fazer parte do Mapa da Fome.

Se o governo Lula 3.0 for capaz de fortalecer o debate nacional acerca da importância da inflexão no financiamento público dos transportes, com a criação do SUM (Sistema Único de Mobilidade), discutindo propostas efetivas, vivenciaremos um novo momento democrático, capaz de dar uma resposta à altura das manifestações de junho de 2013.

Talvez esse seja o Brasil do futuro, um que é capaz de mudar a relação das pessoas com o tempo.

Marcos Lopes Campos é pós-doutorando no Programa Internacional de Pós-Doutorado no Cebrap e pesquisador associado no Grupo CASA. É doutor em sociologia (IESP-UERJ) e mestre em Ciência Política (DCP-USP). Suas pesquisas versam sobre temporalidades, dinheiro, práticas artísticas periféricas, o ganhar a vida, infraestruturas urbanas, mobilidade urbana, violência e raça.

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