Em alguns dias, milhões de cidadãos vão votar em uma das eleições mais polarizadas desde a redemocratização. Um dos fatores principais que torna esta eleição tão tensa é a generalizada insegurança factual.
Dados sobre economia, meio ambiente, fome e pobreza – entre outras estatísticas que fazem parte da “transparência pública” – estão sujeitos a narrativas conflitantes, resultando em uma confusão massiva. Às vésperas das eleições presidenciais de 2022, a insegurança factual ameaça os pressupostos que os eleitores levam para as urnas. Em 28 de setembro foi celebrado o “Dia Internacional do Direito de Saber” e essas questões merecem reflexão.
Há pouco tempo, a vantagem mais importante das democracias sobre as autocracias era a precisão das informações – transparência no governo e livre imprensa. No entanto, essa vantagem parece estar se esvaindo, e talvez ainda não compreendamos o que está em risco.
Um exemplo histórico extremo nos faz refletir sobre esses riscos. Durante o Grande Salto Adiante da China (1958-62), as autoridades subnacionais relataram colheitas exageradas para agradar a liderança do país, exercida pelo presidente Mao Zedong. O governo central baseou as decisões distributivas nessas informações deturpadas, apropriando-se de uma grande quantidade de grãos do interior, resultando em fome e morte em massa – entre 15 e 45 milhões de pessoas morreram. A distorção de informações estatísticas continua a afligir autocracias como o Vietnã e a China. Pesquisas mostram que os planejadores centrais nesses países frequentemente ignoram os números oficiais, com consequentes distorções que afligem tanto as políticas públicas quanto a economia.
Sem informações confiáveis, tragédias políticas, humanas ou relacionadas ao mercado são iminentes. Esse foi o caso durante a pandemia, quando a supressão de dados, a desinformação e a falta de transparência agravaram a situação que já era ruim.
A vantagem mais importante das democracias sobre as autocracias era a precisão das informações. Essa vantagem parece estar se esvaindo
A atual eleição federal brasileira é um emblema de uma luta global e sem precedentes contra a desinformação. Evidências das eleições de 2018 demonstram que corrigir rumores políticos é um grande desafio – após serem expostas a rumores, as pessoas tendem a não aceitar informações que os corrijam, mesmo quando essa correção está de acordo com as crenças que elas possuem sobre o tema. Igual como na atual eleição, parece que escolher um dos lados se tornou mais importante do que interrogar os fatos. O resultado é o desengajamento; a deliberação democrática – especialmente em termos de questões políticas reais – é praticamente inexistente.
E enquanto muitos “fatos” estatísticos tornaram-se objeto de discussão, certas ações e promessas deixam pouco espaço para interpretação. Desde o início do governo do presidente Jair Bolsonaro, muitas formas de transparência foram atacadas. No primeiro ano do governo tentou-se aumentar o número de autoridades legalmente autorizadas a reservar informações como confidenciais (decreto 9.690/2019) – o que poderia aumentar significativamente o sigilo no governo. A gestão também teve como objetivo extinguir os órgãos consultivos (decreto 9.759/2019), entidades que contribuem com significativa expertise cívica e fiscalização das operações governamentais. E durante a pandemia o governo buscou eliminar prazos para responder às solicitações de acesso a informações, bem como suspender todos os recursos e sanções por descumprimento (decreto 928/2020).
Deixando de lado o tal “orçamento secreto”, dentre outras transgressões contra a transparência pública, o respeito do atual governo ao direito de saber deixa muito a desejar. Dos quatro candidatos mais bem colocados em pesquisas de intenção de votos, incluindo Jair Bolsonaro, Luiz Inácio Lula da Silva, Simone Tebet e Ciro Gomes, apenas a plataforma oficial do ex-presidente Lula assume qualquer compromisso explícito com o fortalecimento do direito primário à informação no Brasil, a lei 12.527 sobre acesso à informação pública (LAI).
Aquele ou aquela que venha a ser o futuro presidente deve reforçar os compromissos com a transparência pública. A tendência dos gabinetes presidenciais a partir da gestão do presidente Michel Temer (2016-2018) é a diminuição de respostas governamentais aos pedidos de acesso à informação.
Felizmente, o serviço público profissional (excluindo o gabinete) como um todo manteve-se relativamente constante no tratamento da LAI. O mesmo vale em relação aos recursos de terceira instância julgados pela CGU (Controladoria-Geral da União).
Olhando para o futuro, a transparência e o respeito à informação continuam sendo uma agenda crítica no Brasil. Dez anos após a aprovação da LAI, menos da metade de todos os municípios adotaram dispositivos legais para implementá-la. Além de compromissos mistos ao direito do cidadão de saber sobre o governo, o Brasil é um país que ainda carece de uma educação universal forte e onde grande parte da mídia fora de algumas empresas nos grandes centros carece de independência. Para que o Brasil prospere, o desrespeito à informação tem que mudar; e a mudança deve começar nos níveis mais altos.
Gregory Michener é professor associado da FGV-Ebape (Escola Brasileira de Administração Pública e Empresas da Fundação Getulio Vargas).
Virginia Rocha é doutoranda em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco.