No dia 18 de maio de 2020, João Pedro Matos estava com quatro amigos e um primo no terraço de sua casa em São Gonçalo, Rio de Janeiro, enquanto seus pais trabalhavam. Ao perceber o início de um tiroteio, ele e os amigos correram para dentro. “Estou dentro de casa. Calma”, ele assegurou à mãe por WhatsApp. Do helicóptero, a polícia atirou 64 vezes contra a casa. João Pedro foi atingido nas costas e morreu. Ele tinha 14 anos.
Casos como o de João Pedro não estão restritos ao Rio de Janeiro. Segundo o DataSUS (base de dados do Sistema Único de Saúde), entre 2001 e 2018, cerca de 140 mil crianças e adolescentes (0 a 19 anos) foram assassinados por armas de fogo no Brasil — 70% deles eram negros. Em média, 7.806 jovens brasileiros morrem todos os anos por arma de fogo. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), o país tem a terceira maior taxa de homicídios de crianças e adolescentes do mundo: 16,3 a cada 100 mil habitantes, atrás apenas do México (26,7) e de El Salvador (17,5). Diante do descaso do poder público em relação ao problema, precisamos de pressões externas, como a mobilização da sociedade civil, para levar o governo a proteger a juventude brasileira.
O tema parece ter surgido no Congresso Nacional pela primeira vez em 1992, quando instalou-se na Câmara dos Deputados uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar o alto número de assassinatos de crianças e adolescentes. Dos oito projetos propostos pela CPI, só dois viraram lei. A primeira dessas leis restringiu a atividade de empresas de segurança privada, e a segunda retirou da competência da Justiça Militar o julgamento de crimes dolosos cometidos por policiais militares contra civis.
Em 2015, parlamentares criaram outra CPI no Senado para investigar o assunto, focando na população jovem negra. O trabalho dos senadores resultou em um único projeto de lei (PLS 240/2016), que instituiu o “Plano Nacional de Combate ao Homicídio de Jovens” (sua implementação está prevista no Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social de 2018). Esse projeto prevê a redução do número de homicídio de jovens para menos de 10 a cada 100 mil habitantes nos próximos dez anos, a redução da letalidade policial e da vitimização dos policiais e o aumento para 80% da elucidação dos crimes, entre outros pontos. O Senado aprovou o projeto em 2018. Desde então, está pronto para ser votado no plenário da Câmara dos Deputados (PL 9796/2018), mas nunca entra em pauta.
No âmbito do poder Executivo, o Programa de Redução da Violência Letal Contra Adolescentes e Jovens, implementado pela gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em parceria com o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e o Observatório das Favelas em 2009, foi descontinuado pela ex-presidente Dilma Rousseff. Mais recentemente, o Juventude Viva, programa do governo de Michel Temer, foi descontinuado pela administração de Jair Bolsonaro.
Há três explicações para a falta de políticas públicas consistentes focadas em combater o homicídio de crianças e adolescentes no Brasil. A primeira diz respeito à precariedade dos dados sobre a morte dos jovens, o que dificulta o entendimento sobre o problema. Não há qualquer base de dados que relacione mortes por armas de fogo e por ação policial. Portanto, não é possível mensurar a responsabilidade exata da violência do Estado na morte das crianças. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública estima que entre 2017 e 2019 os policiais mataram ao menos 2.215 crianças e adolescentes no Brasil. Além disso, dados do Unicef mostram que as Polícias Civil e Militar foram a principal causa de mortes não acidentais de crianças e adolescentes entre 2014 e 2018 em São Paulo. Nesse período, a polícia matou 580 crianças e adolescentes no estado. Esses números indicam a existência do problema, mas não ajudam a dimensioná-lo.
Mudanças ocorrem quando políticos são forçados a prestar atenção em certos problemas sociais. Uma das maneiras de direcionar a atenção deles é via pressão popular
Segundo, o poder Executivo foi incapaz de conter a violência no país ao longo das três décadas passadas. Segundo o antropólogo Eduardo Soares, os problemas de segurança pública se acumularam durante o primeiro governo Lula porque o governo de Fernando Henrique Cardoso tomou apenas medidas incrementais para a área. A taxa de homicídio aumentou de 21,84 a cada 100 mil habitantes em 1995 para 28,53 em 2002 (hoje a taxa é 31,59). No período, o número de jovens assassinados passou de 18.924 para 27.757. Ao mesmo tempo, os custos eleitorais para resolver a questão da violência aumentaram. Soares conta que o medo do fracasso deixou o ex-presidente Lula relutante em implementar seu próprio plano de segurança pública. Eventualmente, ele criou o Plano Nacional de Segurança Pública com Cidadania, que também foi descontinuado por Dilma Rousseff logo depois.
Entendemos que a falta de um consenso sobre segurança pública criou a descontinuidade que descrevemos acima, trazendo implicações diretas para o problema do assassinato de jovens. O tema da segurança pública foi discutido na Assembleia Constituinte de 1988, mas não houve concordância entre a esquerda e a direita sobre como estruturar a área. Pelo contrário, segundo Natália de Oliveira Fontoura, a falta de uma proposta homogênea por parte da esquerda somada ao lobby das Forças Armadas, corporações policiais e delegados fez com que o modelo institucional do regime militar (com as polícias subordinadas às Forças Armadas) permanecesse.
Terceiro, o descaso também é produto de limitações cognitivas e institucionais presentes em qualquer sistema democrático. Formuladores de políticas públicas só conseguem focar em um conjunto limitado de problemas por vez. Além disso, regras e procedimentos democráticos (por exemplo, a necessidade de se formar maioria para aprovar um projeto de lei no Congresso) criam fricção no sistema político, atrasando a resposta a problemas sociais. Como resultado, governos tendem a ignorar problemas por longos períodos de tempo. Essa dinâmica ajuda a explicar por que o PL 9796/2018, que cria o Plano Nacional de Combate ao Homicídio de Jovens, continua no limbo legislativo. Houve uma tentativa de votá-lo no começo de 2020, mas naquele momento a atenção dos deputados foi redirecionada para uma questão mais urgente: a pandemia.
A literatura em ciência política mostra que políticas públicas não mudam por longos períodos de tempo, mas alguma hora a mudança chega — e de maneira dramática. Mudanças ocorrem quando políticos são forçados a prestar atenção em certos problemas sociais. Uma das maneiras de direcionar a atenção deles é via pressão popular. Diante da falta de consenso sobre segurança pública no país, a mobilização da sociedade civil contra o assassinato de crianças e adolescentes pode ser a única saída para chamar a atenção do poder público para o problema. Essa estratégia tem dado certo na educação, por exemplo. Em 2020, a organização não governamental Todos pela Educação e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação foram fundamentais para a aprovação do Fundeb (Fundo Nacional de Educação Básica) no Congresso.
A melhor estratégia seria pressionar pela aprovação do PL 9796/2018, que já passou por quase todos os estágios do processo legislativo e está pronto para ser votado. Ao contrário da CPI de 1992, que fatiou o problema em diversos projetos de lei, a CPI de 2015 criou uma única peça legislativa com diretrizes e objetivos para as diversas esferas de governo em todo o país. A sociedade civil pode aproveitar o foco renovado em questões de raça e violência policial no país para mobilizar os parlamentares na Câmara dos Deputados pela aprovação do PL. Até agora, o poder público falhou em proteger as vidas de João Pedro e de milhares de outros jovens. A aprovação do PL 9796/2018 representaria um primeiro passo no sentido de prevenir mortes futuras de crianças e adolescentes brasileiros.
Este texto foi originalmente publicado em inglês no site do Wilson Center.
Beatriz Rey é pesquisadora associada ao Centro de Estudos Latinos e da América Latina da American University, em Washington, e doutoranda em ciência política na Universidade Syracuse, em Nova York. É assistente de pesquisa no Qualitative Data Repository, mestre em ciência política pela Universidade da Carolina do Norte e bacharel em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero.
Estevan Muniz é jornalista e cineasta. Mestre em jornalismo pela Universidade Columbia, bacharel em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero e repórter da TV Globo.