A Constituição de 1988 ampliou o acesso a políticas sociais e as tornou um dever do Estado. Mas a qualidade e a equidade dessas políticas não seguiram o mesmo ritmo. Nove em cada dez brasileiros consideram que a qualidade de serviços públicos deveria ser melhor, e sete em cada dez acreditam que a baixa qualidade dos serviços é mais consequência da má utilização dos recursos arrecadados pelos impostos do que da falta deles. Somado a isso, nosso modelo federativo transferiu aos municípios boa parte da responsabilidade pela prestação de serviços à população, mas sem garantir autonomia financeira. Hoje, o baixo desempenho econômico representa um fator de pressão adicional para os gestores públicos nos 5.570 municípios de todo o país.
Apesar desse cenário adverso, a inovação tem se mostrado uma oportunidade, e alguns gestores têm sido bem-sucedidos numa tarefa fundamental para a democracia, mas nem sempre de fácil execução: assegurar a participação social por meio de aprimoramento na prestação de contas e mecanismos de transparência de seus governos.
Nova Andradina, Paranaíba e Inocência, todos com populações de até 50 mil habitantes, são três municípios do Mato Grosso do Sul que atingiram nota máxima na Escala Brasil Transparente, iniciativa da Controladoria Geral da União que mede a transparência em estados e municípios. Inocência é um dos casos mais surpreendentes, tendo saltado de 2,5 para 10 (nota máxima) entre uma avaliação e outra.
Tais resultados colocam luz sobre alguns dos principais desafios para a inovação em âmbito municipal: falta de recursos; carência de recursos humanos; excesso de burocracia na contratação de serviços; falta de cultura de inovação no setor público; e a dificuldade de realizar parcerias externas.
Os exemplos do Mato Grosso do Sul podem servir de inspiração para outros locais, pois apontam para estratégias de quem conseguiu fazer muito apesar das dificuldades. No caso de Inocência, foram fundamentais o estímulo aos servidores e gestores mais comprometidos e alinhados com a temática; o apoio da prefeitura para capacitação e treinamento de agentes públicos responsáveis pela aplicação da Lei de Acesso à Informação; e a fiscalização do Ministério Público Federal, que havia notificado o município anteriormente e serviu como ponto de alerta para a articulação das secretarias na publicidade das informações no Portal da Transparência.
Uma administração pública local que se deixa monitorar pela sociedade sinaliza que não tem nada a temer, dando bases para acreditarmos na sua idoneidade
Alcançando importantes indicadores por meio do projeto Município Transparente, parceria da Agenda Pública, Instituto Ethos e Techint, a pequena Serra do Salitre, em Minas Gerais, entrou no ranking 2021 do Indicadores Cidades Transparentes Ethos. Com pouco mais de 11 mil habitantes, o município mineiro obteve 79,34 no índice. A nota inicial em 2019 era 23 e a média nacional é 40,87.
O resultado foi possível com regulamentação da Lei de Acesso à Informação a nível municipal; implantação de unidades do Serviço de Informação ao Cidadão (presencial e online); melhorias na atuação entre secretarias capazes de facilitar ações e processos que envolvam articulações entre diversas áreas; aumento do acesso a serviços públicos de qualidade; formação de servidores públicos para resolução de problemas, engajamento e comprometimento. Tudo isso gerou maior confiabilidade da população de Serra do Salitre no setor público, o que acarretou, inclusive, na reeleição do prefeito para continuar a administração a partir de 2021. Foram mais de 92% dos votos.
Em anos recentes, vem crescendo o questionamento sobre a sustentabilidade financeira dos pequenos municípios. Nesse contexto, a transparência de governos como os de Inocência e Serra do Salitre é central para o debate público, permitindo provar sua eficiência administrativa. Uma administração pública local que se deixa analisar, verificar, monitorar pela sociedade, sinaliza que não tem nada a temer, dando bases para acreditarmos na sua idoneidade e sustentabilidade.
No exemplo de Inocência, o impressionante número de 278 acessos diários ao Portal da Transparência pode indicar um fator interno (além da gestão comprometida e do funcionalismo capacitado) que alimenta um círculo virtuoso. Mas nos caberia perguntar: se cidadãs e cidadãos estão acessando essas informações, isso faz deles parte integrante do que chamamos de governo aberto?
Para os participacionistas, qualquer ato de um cidadão em relação ao governo é importante como aprendizado e tomada de consciência sobre seu papel nas decisões de interesse público. No entanto, se a maioria dos acessos ao portal tiver caráter de serviço ou reclamação sobre questões individuais, temos grande espaço para trabalhar, no sentido de convidar e até convocar a cidadania a se posicionar sobre as decisões públicas.
Pode-se aproveitar esse fluxo do portal para provocar reflexões sobre o que o cidadão espera para sua cidade e o que ele ou ela precisa fazer para que isso se torne realidade. Trata-se de avançar da transparência passiva e de um governo aberto para um governo tomado pela cidadania, em que o cidadão não se sente cliente, mas parceiro da gestão pública.
Para isso, é preciso lembrar que a maioria das pessoas não tem tanto interesse na vida pública. Mais que isso, tem barreiras concretas (de sobrevivência e gestão da vida privada) para uma participação regular. Convocações para atividades presenciais específicas (sortear entre os que acessaram o portal naquele mês) e eventos em locais de grande fluxo bem divulgados para discussão de temas urgentes são opções viáveis em municípios menores e podem trazer novas lições de revigoramento democrático para todas as cidades brasileiras, com exemplos práticos de como trazer a força da cidadania para dentro da administração pública.
Tais casos podem ser boas referências para os futuros agentes públicos, cerca de 57 mil vereadores e mais de 11 mil prefeitos(as) e vice-prefeitos(as), que acabamos de escolher em eleições municipais por todo o país. Bem como podem ser úteis para inspirar cidadãs e cidadãos no posterior acompanhamento e fiscalização de seus representantes.
Mônica Sodré é cientista política, doutora em relações internacionais pela USP (Universidade de São Paulo) e diretora da Raps (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade).
Silvia Cervellini é fundadora do Coletivo Delibera Brasil.
Este texto foi elaborado a partir de estudos das autoras e pesquisa sobre governo aberto e transparência realizados pela Agenda Pública, organização especialista no aprimoramento de serviços públicos simples, inteligentes e humanos.