Este texto dá continuidade ao interessante debate iniciado neste mesmo espaço de opinião do Nexo pelos cientistas políticos Carlos Sávio Teixeira e Lucas Cunha, sobre o presidencialismo do governo Bolsonaro. A minha intenção é destacar alguns pressupostos filosóficos da contenda e me posicionar diante dos contendores.
Começo contextualizando o meu ponto. O que predominou na academia do Atlântico Norte, especialmente nos Estados Unidos, e que acabou sendo exportado para o Brasil como o institucionalismo em ciência política, foi e segue sendo a tendência de interpretar as instituições a partir de uma perspectiva conservadora — ainda que, eventualmente, respaldada por agendas políticas e morais progressistas (redistributivistas e deliberacionistas, quase sempre). O vento que sopra essa maré é uma derivação do que denomino, de forma mais genérica e filosófica, institucionalismo imanentista, um amplo corpo de ideias que associam o êxito da institucionalidade à capacidade de doar estabilidade às interações a que serve como mediadora. A sua mais forte, consistente e persuasiva elaboração está nos trabalhos do Hegel maduro, notadamente em sua “Filosofia do direito” (1820). Mas inúmeras variações de suas premissas, menos persuasivas e menos abrangentes, floresceram no século 20 e permanecem influenciando os cientistas políticos a adotar o atalho estreito e superficial da mensagem da imanência, a saber: a formulação de desculpas para a conservação institucional.
Essa é uma pista para explicar a resistência e a dificuldade dos analistas políticos, instrumentalizados pelo jargão e pelos problemas institucionalistas, de reconhecer e apostar na mudança institucional, de conceber as instituições por sua plasticidade, de atribuir a elas um estatuto de artefatualidade, de criação humana. Preferem verbalizar frases de cautela para silenciar a melancolia da falta de repertório, escancarada diante dos impasses que os surpreendem. Sem a ênfase na plasmação da vida social, eles tornam o slogan “instituições importam” apenas a maquiagem com que a perplexidade se enfeita para parecer virtude.
O conservadorismo institucional da cultura acadêmica falha tanto em interpretar quanto em propor caminhos para a sonhada e repetida qualidade da democracia
Assim soa o provocativo e interessante artigo de resposta do cientista político Lucas Cunha ao texto publicado por Carlos Sávio Teixeira, o proponente de um diagnóstico do presidencialismo na era Bolsonaro e de soluções para o que ele impôs ao país. Teixeira sugere que Bolsonaro é o intérprete de uma crença popular difusa e expressiva de que não há diferença entre o presidencialismo de coalizão e o toma-lá-dá-cá. Ele pensa que essa interpretação foi trazida ao exercício de chefia de Estado na forma de um “presidencialismo plebiscitário”. O custo do êxito eleitoral e do apoio persistente nas pesquisas de opinião ao presidente estaria no clima de conflito com que Bolsonaro conduz o seu governo, tensionando as instituições a ponto de acenar para uma aventura autoritária em seu favor, ou de enfraquecê-las, subtraindo delas a substância e a autoridade de que precisam. É um Leviatã empoderado para tornar rotina a guerra de todos contra todos.
Interpretando o texto de Teixeira, parece que o impasse é entre a massa de representados que se sente contemplada pela mensagem de flerte anti-institucional do bolsonarismo e as instituições que não podem seguir o seu curso normal, maculadas por significativa antipatia cética das massas e carentes de uma reorientação que as ressignifique e as libere da nódoa bolsonarista. Tentando absorver da mensagem o que há nela de compatível com uma proposta democrática, a resposta afirmativa de Teixeira vai na contra-mão da avenida institucionalista — que interpreta ser a tarefa da política institucionalizar a democracia — no sentido que opera um retorno ao valor da democratização das instituições. Em outras palavras, Teixeira parece querer impor às instituições o espírito democrático, não vestir a democracia com camisas-de-força institucionais. Assim me chegam as propostas de incorporar às instituições o conflito e a alta temperatura da mobilização popular que em seu artigo são aventadas.
Essa abordagem é uma das variantes do que tenho chamado de institucionalismo transcendentista, a tese de que leituras realistas dos fenômenos institucionais precisam reconhecer neles plasticidade e instabilidade antes de tudo, e devolver aos indivíduos e às sociedades a autonomia e o empoderamento sobre suas criaturas institucionais. Duas das mais bem articuladas elaborações filosóficas dessa perspectiva estão nas obras de Roberto Mangabeira Unger e Cornelius Castoriadis. Mas é curioso que a agenda transcendentista, como bem exemplificada por Teixeira, seja descredibilizada por Cunha justamente por combinar a interpretação do fenômeno com alternativas de intervenção nas instituições. Cunha prefere terceirizar o impasse registrado por Teixeira à enxúndia inoperante do sistema partidário e apostar em coisas genéricas com aparência de civilizadas “tais como a preservação da qualidade da representação e da racionalidade da representação de minorias em sistemas democráticos, e não das maiorias” — o que sabemos ser a agenda que, por ser rejeitada, deu vitória, não apenas a Bolsonaro, mas também a Trump. Esse imanentismo diluído custa caro porque sequer é capaz de realizar a estabilidade como desejaria — em um plano mais abstrato, claro — o imanentismo vigoroso de Hegel, atravessando as tensões da vida social em uma progressiva conquista da efetivação da institucionalidade, desde a experiência da família à consecução do Estado.
Tratando como expressão meramente conjuntural a mensagem das urnas e a persistente aprovação do governo Bolsonaro, Cunha parece apostar no mesmo conservadorismo institucional da cultura acadêmica que falha tanto em interpretar quanto em propor caminhos para a sonhada e repetida qualidade da democracia. Isso porque ele associa o conteúdo do que é o qualitativo a uma lista sumária de critérios que alguns cientistas políticos do Atlântico Norte utilizam para comparar diferentes democracias e abreviar as vastas formas de organizar as experiências coletivas em rankings, que, a rigor, servem mais para expressar a vaidade das elites pensantes do que a exuberância criativa dos povos — o passado, foi esse o mesmo acalanto que embalou o sonho madisoniano, metaforizado no desejo por fórmulas que pudessem fazer as instituições funcionarem bem sem muita mobilização popular. O conservadorismo institucional que quer contrariar a agenda de mobilização transcendentista de Teixeira tem o seu próprio horizonte de expectativas institucionais. Nele, as instituições são tão melhores quanto mais independentes das vicissitudes dos povos — o sonho do piloto automático.
Em linhas gerais, a visão a respeito da política, das instituições e do saber social que as esclarece é muito distinta em ambos os autores e isso reflete a contenda sobre o presidencialismo na era Bolsonaro. Apesar de reconhecer as virtudes do institucionalismo imanentista em sua expressão vigorosa, não em sua versão diluída — com a qual Cunha parece flertar —, entendo que as propostas transcendentistas de Teixeira, em sua maneira de ler a política, as instituições e a ciência social, são muito mais oportunas nesse momento e por um motivo: elas traduzem as intuições que mobilizam a massa que se identifica com Bolsonaro como oportunidade para se refazer a atividade política em nosso regime representativo, para reorientar a performance das instituições sem demandar uma assembleia constituinte e para contribuir com a mudança dos critérios da prática científica refletida nos programas de ciências políticas em nosso país. É o prenúncio de uma grande obra que pressupõe uma grande tarefa. A meu ver, não convém abdicarmos dela.
Tiago Medeiros Araújo é doutor em filosofia pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), professor do Instituto Federal da Bahia e membro do Laboratório de Estudos Brasil Profundo. Autor do livro “Pragmatismo romântico e democracia” (Edufba, 2016).