Foto: Isac Nóbrega/Agência Brasil

Bolsonaro e a política do ‘all in’: estratégia de confronto


As atitudes do presidente desde o início da crise do novo coronavírus ofereceram um norte para a fragmentada oposição: o antibolsonarismo

Indo diretamente aos fatos: o presidente Jair Bolsonaro não quis construir uma base parlamentar em nenhum momento desde sua eleição. Ele também carregou os mais baixos índices de aprovação em início de mandato dentre todos os presidentes pós-redemocratização. Igualmente, não estabeleceu nenhuma agenda de governo que fosse além de balões de ensaio ou temas herdados de Michel Temer (como a reforma da Previdência e o leilão dos excedentes da cessão onerosa do pré-sal). Ademais, ele não apenas não tem articulação com governadores, como ainda se conflagra com eles.

Mesmo isolado, Bolsonaro governa em estratégia de constante confronto, está sempre no “all in”. Tudo em que enxergue, de alguma forma, o “sistema”, ele enfrenta: o Congresso, o Supremo, a mídia, a política e, neste exato instante, a covid-19. O “all in” mais arriscado de todos foi o seu pronunciamento à nação em 24 de março. Nele, Bolsonaro negou a gravidade do coronavírus e colocou-se contra o isolamento social, prática de todos os países que conseguiram, assim, conter a expansão do contágio.

O curioso é que, jogando sempre no “all in”, Bolsonaro permanece no cargo. Falas de impeachment não passam de ruído, diferentemente do que ocorreu com os presidentes em condições semelhantes, como Collor e Dilma, que também não compreendiam o presidencialismo de coalizão e que, perto do fim, já não tinham sequer os 171 votos necessários para barrar a instalação de um processo de impedimento pela Câmara dos Deputados.

O que, então, viabiliza a política do “all in” constante de Bolsonaro?

O fragmentado sistema oposicionista enfrenta um monolito que é uníssono e entrega ao povo, por meios ajustados ao mundo atual, o que ele quer ouvir

Primeiro, embora Bolsonaro não tenha constituído base parlamentar, soube capitalizar muito bem sua base de apoio popular, que é ampla, aguerrida e bastante fiel ao “mito”. Tal base não corresponde à votação por ele recebida em 2018, pois a ela se somou o voto anti-PT. Mas, ainda assim, não é desprezível e se situa entre 20-30% da população, caso consideremos a resiliente aprovação de seu governo e atentemos à intenção espontânea de votos na eleição de 2018. Essa base, ou ao menos seu núcleo duro, é uma espécie de monolito uníssono e extremamente militante não apenas nas redes sociais, mas, sobretudo, a partir delas.

Segundo, mesmo antes das eleições de 2018, Bolsonaro soube usar as redes sociais para formar e amalgamar sua base. Todavia, o mundo virtual não é o único local do bolsonarismo. Ele é o centro de consolidação e espalhamento do discurso bolsonarista, mas a militância parte da rede social e se transforma frequentemente em um movimento real e coeso. Exemplos não faltam: as manifestações espontâneas de apoio a Bolsonaro antes de ser candidato — como ilustra a centralidade que lhe foi dada durante a greve dos caminhoneiros —, os protestos a favor do governo e contra o Congresso e o Supremo, ou ainda as carreatas de agora contra o isolamento social.

O terceiro elemento é a desorganização dos campos políticos de oposição, tanto à esquerda quanto ao centro (e mesmo à centro-direita). Não se trata de tais campos estarem desorganizados internamente; eles estão despreparados para enfrentar a forma como se dá a política bolsonarista, o “all in”. Este despreparo tem várias razões: (1) a incapacidade de mudança do discurso para atingir a rationale social atual e o uníssono discurso bolsonarista, (2) o fato de terem sido maculados como o “sistema”, que, então, precisa ser destruído, (3) o atraso em relação à estratégia de como usar as redes sociais, (4) a inabilidade em transformar as fragmentadas correntes de oposição em alguns poucos discursos mais coesos, entre outros motivos. Assim, o fragmentado sistema oposicionista, com discurso que não mais alcança parte expressiva da população — inclusive porque é dito por meios obsoletos — enfrenta um monolito que é uníssono e entrega ao povo, por meios ajustados ao mundo atual, o que ele quer ouvir.

Sabemos que os presidentes minoritários no Congresso que buscaram transfigurar o “presidencialismo de coalizão” nunca terminaram seus mandatos (Getúlio sofreu impeachment, venceu, mas cometeu suicídio dois meses depois; Jânio renunciou ao cargo; Jango sofreu um golpe; Collor e Dilma foram impedidos de continuar no cargo pelo instrumento constitucional do impeachment).

Como terminará esta mais nova — e triste, anticientífica e anti-iluminista — aventura?

Diferentemente de Collor e Jânio, que não dispunham de um grupo social coeso, e mesmo de Jango e Dilma, que embora contassem com sindicatos e movimentos sociais, estavam desgastados pelo uso contínuo do poder, Bolsonaro detém ainda o controle sobre uma parte importante do braço armado do Estado. O presidente pode ter um apoio cada vez mais frágil perante o oficialato das Forças Armadas, mas nos soldados, que são o verdadeiro contingente do meio militar, e, principalmente, nas polícias militares estaduais, o apoio parece ainda bastante sólido. O motim em Sobral, há apenas um mês, é uma assustadora lembrança: eram policiais militares comandando uma greve ilegal em busca de maiores salários e a despeito da grave crise fiscal do setor público. Por sua vez, o Governo Federal endossou esse motim.

Contudo, Bolsonaro deu agora seu maior “all in”. Arriscou-se a colocar as pessoas de volta ao trabalho, com sua irracional campanha “O Brasil não pode parar” (depois apagada dos perfis oficiais pela Secretaria de Comunicação do governo que, tal como no distópico orwelliano “1984”, agora quer fazer crer que “O Governo” nunca fez tal campanha). Não fosse a pressão sobre o Congresso, o pacote de apoio aos informais não viria. A burocracia autônoma frente ao presidente, como no Banco Central, começou a esboçar medidas importantes para segurar o emprego formal e fazer valer a liquidez no crédito livre. Ainda falta muito, mas se toda a estrutura federal estivesse à mercê do presidente, nem mesmo esses esforços teriam saído do papel.

As atitudes de Bolsonaro desde o início da crise do novo coronavírus ofereceram um norte para a fragmentada oposição: o antibolsonarismo. Este movimento ainda é tímido e tem se expressado por panelaços espontâneos nas noites brasileiras. Assim como a corrente negativa do antipetismo alavancou a candidatura de Bolsonaro, uma nova onda de negação — desta vez contra ele — pode significar seu ocaso.

Se o vírus for, como pode ser, o royal straight flush da rodada atual do baralho, este “all in” de Bolsonaro deve ser seu último blefe.

Fábio Bittes Terra é doutor em economia pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e professor na UFABC (Universidade Federal do ABC) e no PPGE-UFU (Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal de Uberlândia).

Cláudio Couto é doutor em ciência política pela USP (Universidade de São Paulo) e professor na FGV-SP (Fundação Getulio Vargas).

João Villaverde é doutorando em administração pública e governo pela FGV-SP e foi pesquisador visitante na Universidade de Columbia (Nova York).

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