Foto: Paulo Whitaker/Reuters - 13.02.2008

Os dados pessoais e os escravos digitais


Precisamos ter controle sobre nossos dados e saber como a riqueza que eles representam é utilizada

A cada dia, você produz quantidades imensas de dados extremamente valiosos que alimentam a economia online e que estão se tornando extremamente importantes para a economia offline. Assim, como você ouvirá em qualquer debate sobre tecnologia, os dados representam uma nova classe de ativos econômicos e são considerados frequentemente como “o novo petróleo.”

Quanto mais tempo um usuário gasta num aplicativo móvel ou numa plataforma online, mais dados sobre seus hábitos de navegação, sua posição geográfica, seus contatos, seus gostos, seu comportamento e o que ele “acha naquele momento” ele produz.

O objetivo do constante convite para publicar um novo conteúdo, encontrar pessoas que você conhece ou avaliar um novo restaurante ou uma nova série é organizar o tempo “livre” dos usuários para transformá-lo em trabalho. E o produto de tal trabalho são os estimados dados, que serão analisados, alugados e vendidos como qualquer outra mercadoria.

De fato, produzir dados é um verdadeiro trabalho, essencial para os modelos de negócio de um leque cada dia maior de empresas. Por exemplo, em 2016, a receita anual do Facebook foi de US$ 27,6 bilhões. No mesmo período, a empresa contava com pouco mais que 17 mil funcionários o que significa que cada funcionário, desde o executivo até os estagiários, produziu em média US$1,6 milhões por ano.

Mesmo considerando o alto valor da equipe do Facebook, essa estimativa parece simplesmente inacreditável. Se considerarmos que a plataforma tinha cerca de 1,8 bilhões de “usuários ativos” em 2016 e que o fato de ser ativo significa, concretamente, trabalhar cotidianamente para produzir dados pessoais, as contas tornam-se muito mais plausíveis porque a plataforma contaria, de fato, com 1,8 bilhões de trabalhadores gerando riqueza com as suas informações.

Quando consideramos o valor dos dados pessoais, cabe destacar que tais informações são uma forma de riqueza que, exatamente como o dinheiro, é gerada e acumulada em bancos. Todavia, os bancos de dados não funcionam como os bancos ordinários. No seu banco, você deposita a riqueza que produz e da qual você é o dono e, portanto, sempre poderá retirá-la e transferi-la para outro banco, em qualquer momento. Ao contrário, os bancos dos serviços que coletam e processam os seus dados não permitem que tal riqueza seja retirada e que você mude de banco caso um competidor tenha condições mais favoráveis.

Assim, os dados pessoais geram enorme prosperidade para as entidades que os coletam e os processam, mas os usuários, que produzem esses dados, não têm o menor controle sobre eles.

Esse é um paradoxo do atual sistema de proteção de dados pessoais, que se baseia na expressão do consentimento informado como ferramenta de controle. Isso significa que seus dados serão coletados e processados somente após você ter sido informado sobre as finalidades da coleta e processamento e manifestar seu consentimento, como estabelece o Artigo 7º do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e como estabelecem dezenas de leis no mundo.

O objetivo de tal mecanismo é permitir o controle dos usuários sobre seus dados pessoais. Todavia, a realidade está a anos-luz da letra da lei.

Você conhece as condições contratuais que definem como os seus dados serão coletados e explorados pelos serviços que você utiliza? Essas condições são incluídas nos termos de uso que você aceitou antes de utilizar qualquer serviço, exprimindo o consentimento com aquele clique inicial. O problema é que ninguém lê essas condições! Desafio você a nomear um dos “terceiros” com os quais você concordou contratualmente em compartilhar os seus dados pessoais para “melhorar o serviço” da sua rede social favorita.

Esse cenário torna-se ainda mais paradoxal no âmbito das análises de big data, em que grandes conjuntos de dados coletados são examinados a fim de se encontrar correlações que são desconhecidas antes da análise. É simplesmente impossível pedir o consentimento do usuário para uma análise cuja finalidade não pode ser conhecida.

Basear, então, a proteção de dados em um mecanismo centrado exclusivamente na comunicação de informações vagas, desconhecidas ou não lidas não parece a abordagem mais eficiente para proteger os dados pessoais do indivíduo. Com certeza, a abordagem atual facilita o uso de dados pessoais para quem os coleta, mas não permite ao indivíduo controlar – ou simplesmente saber – como seus dados são explorados.

Diante disso, é justo que um indivíduo transforme gratuitamente a própria identidade numa riqueza (ou seja, os dados) que será explorada ad aeternum por outros, sem nem saber quem, concretamente, explorará tal riqueza e como? É justo que um indivíduo, produtor de dados, não possa decidir ou nem saber com certeza como essa riqueza produzida durante anos de atividade será explorada e não possa mudar de serviço levando os dados consigo?

A resposta a essas perguntas é, claramente, não. Por isso, o novo regulamento europeu sobre proteção de dados pessoais confere a qualquer indivíduo o direito de portabilidade de dados, ou seja, o “direito de receber os dados pessoais que lhe digam respeito e que tenha fornecido a um responsável pelo tratamento, num formato estruturado, de uso corrente e de leitura automática.”

Pela mesma razão surgiu um sistema de proteção “usuáriocêntrico”, como o MyData.org, que oferece aos indivíduos uma abordagem prática para acessar, obter e utilizar os seus dados pessoais e controlar como eles podem ser explorados e para quem, de forma a maximizar os benefícios do indivíduo, promover a competição e minimizar a perda da privacidade.

Por que você deveria ter como única forma de proteção um mecanismo que é comprovadamente ineficiente? Por que você deveria continuar a produzir riqueza que será explorada por terceiros pelas próximas décadas e sobre a qual você nunca terá controle? Quem produz riqueza para outros gratuitamente se chama de escravo. Você quer permanecer na escravidão digital ou quer reivindicar os seus dados?

Luca Belli, PhD é pesquisador sênior do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV. Luca é membro fundador de MyData.org e representante de MyData no Brasil.

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