Foto: Paulo Santos/Reuters - 18.12.2013

O lado obscuro do modelo de desenvolvimento brasileiro


Milhões de cidadãos são forçados a se deslocar em função de desastres naturais, da violência sistemática e de empreendimentos de infraestrutura. Apesar do alto índice de pessoas atingidas, praticamente não há informação disponível sobre essa dinâmica

O Brasil enfrenta não apenas uma, mas múltiplas crises de deslocamento forçado. Desde 2016, milhares de venezuelanos já cruzaram a fronteira com o Brasil em busca de segurança e sobrevivência. O país também recebe refugiados congoleses, colombianos e sírios, além de muitos migrantes haitianos. Muito menos visíveis, no entanto, são os milhões de brasileiros que são forçados a se deslocar em função de desastres naturais, da violência sistemática e de empreendimentos de infraestrutura. Apesar do alto número de pessoas atingidas, praticamente não há informação disponível sobre essa dinâmica.

Uma das principais causas da migração forçada no Brasil são as barragens, especialmente aquelas destinadas à construção de usinas hidrelétricas (UHEs). O Instituto Igarapé analisou os custos socioeconômicos de cerca de 80 barragens construídas no Brasil desde os anos 2000. Após avaliar os dados, o Instituto estima que entre 150 e 240 mil brasileiros foram forçados a deixar suas casas em função da instalação dessas barragens. E é possível que cerca de 75 mil outras pessoas sejam forçadas a abandonar seus lares por conta de 11 novas usinas e centrais hidrelétricas que podem ser construídas nos próximos anos.

É indiscutível que usinas hidrelétricas desempenham um papel central no modelo de desenvolvimento econômico brasileiro. Desde meados da década de 1970, mais de 60% da oferta interna de energia é sustentada pela energia hidráulica. Embora, por um lado, o investimento estatal na construção de grandes centrais hidrelétricas tenha reduzido drasticamente a dependência externa de energia, por outro, teve custos econômicos, sociais ambientais muito elevados.

 

A real magnitude desses custos humanos e ambientais é pouco conhecida e raramente ocupa as manchetes dos jornais. Nem órgãos governamentais nem empresas privadas têm interesse em fornecer informação sobre os “impactos negativos” de seus investimentos. E os 85% dos brasileiros que vivem em centros urbanos estão pouco familiarizados com a realidade dos danos causados por hidrelétricas em áreas rurais. O Brasil sequer produz dados que permitam avaliar onde, quando e quantas pessoas foram deslocadas forçadamente. Tampouco há informações sistematizadas sobre o valor de propriedades perdidas ou sobre dívidas e prejuízos acumulados em função do deslocamento.

Diante de tamanha lacuna, o Instituto Igarapé passou a mapear o escopo e a escala da população brasileira deslocada involuntariamente em função de desastres naturais, de projetos de desenvolvimento e da violência rural e urbana. Uma nova ferramenta criada pelo Instituto em parceria com o Create Lab, da Universidade Carnegie Mellon, e a Nasa permite visualizar a transformação no fluxo dos rios e a devastação ambiental causada pela construção de usinas hidrelétricas.

Usina Hidrelétrica Itá: 1984-2016

 

Tome-se, como exemplo, o caso de Itá, uma das maiores hidrelétricas brasileiras. Estabelecida no ano 2000 no rio Uruguai, a usina gera 1.450 Megawatts (MW) de energia por ano. O reservatório de 140 km² teve impacto sobre 11 municípios de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Estima-se que a usina provocou o deslocamento de 11 a 17 mil pessoas. A mobilização e os protestos contrários à construção da UHE Itá levaram, inclusive, à consolidação do MAB (Movimento dos Atingidos dos Barragens), que atua em defesa de pessoas afetadas por esses empreendimentos. 

Usina de Belo Monte: 1984-2016

 

Mais ao norte, na Bacia Amazônica, encontra-se a UHE Belo Monte, a quarta maior hidrelétrica do mundo, com custo estimado de R$ 30 bilhões e potência máxima de 11 mil MW. Apesar de uma série de decisões judiciais e de uma solicitação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos pela suspensão imediata da construção da usina de 5 km de extensão, o governo brasileiro foi adiante com o projeto. A UHE Belo Monte provocou o deslocamento de mais de 30 mil pessoas e contribuiu para que o município de Altamira, onde a usina está localizada, passasse a liderar o ranking das cidades mais violentas do Brasil, segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

Usina de Irapé: 1984-2016

 

Em todo o Brasil, são enormes as tensões entre investidores, órgãos de governo, movimentos sociais e população atingida. Longos embates acerca de medidas compensatórias e reparatórias às perdas causadas pela construção das hidrelétricas ainda persistem. No caso da UHE Irapé, em Minas Gerais, mais de uma década se passou sem que se chegasse a um acordo sobre as ações de indenização e reparação das comunidades afetadas. Embora a empresa responsável pela usina reconheça ter provocado o deslocamento de cerca de 5 mil pessoas (1.558 famílias), organizações da sociedade civil acreditam que esse número seja pelo menos quatro vezes maior.

Ainda que o deslocamento de populações ocasionado pela instalação de hidrelétricas não seja um fenômeno recente, o Brasil não possui nenhum órgão encarregado de prover proteção, compensação e reparação a essas pessoas. No Executivo, o deslocamento forçado resultante de projetos de infraestrutura tem sido monitorado pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis) e por órgãos equivalentes no âmbito estadual, no marco das condicionantes ambientais necessárias à emissão de licenças. Embora desempenhem trabalho importante, esses órgãos carecem de recursos, de pessoal e de formação técnica específica para responder aos desafios da migração forçada. Além disso, não possuem normativas ou protocolos próprios para conduzir análises de risco ou para propor e garantir medidas compensatórias, serviços básicos e reparação adequada às pessoas deslocadas.

A ideia não é defender a interrupção completa da instalação de usinas e centrais hidrelétricas no Brasil, mas incentivar que o processo seja mais transparente, participativo e sustentável. É urgente que se adote um paradigma socialmente responsável, sobretudo face ao número expressivo de barragens e hidrelétricas em fase preparatória de construção.

A hidrelétrica binacional de Garabi-Parambi, por exemplo, teve licenciamento ambiental suspenso pela Justiça em razão dos impactos irreversíveis que poderia causar. Se a construção for autorizada, poderá deslocar tantas pessoas quanto Belo Monte, não apenas no Brasil mas também na Argentina.

A marca de uma sociedade avançada está na forma como trata suas populações mais vulneráveis. Embora o Brasil tenha se tornado um país urbanizado, são normalmente as populações rurais e comunidades indígenas – que dependem da terra para sobreviver – as que acabam forçadas a se deslocar em nome de um pretenso progresso sobre o qual não foram consultadas.

Hidrelétricas são apenas um dos muitos exemplos de projetos que provocam migração involuntária. A elas se somam atividades mineradoras, projetos portuários, rodoviários, ferroviários e muitos outros. Transparência e responsabilização sobre impactos adversos são compromissos que o governo brasileiro deveria levar mais a sério.

Robert Muggah é cofundador do Instituto Igarapé

Maiara Folly é pesquisadora do Instituto Igarapé.

ESTAVA ERRADO: A primeira versão deste texto afirmava que a capacidade da usina de Belo Monte é de 11 MW, quando na verdade é de 11 mil MW. A informação foi corrigida no dia 17 de setembro de 2017 às 13h27

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