Foto: Pedro Nunes/Reuters - 16.10.2017

Incêndios em Portugal: quando os lobbies matam


Queimadas vêm se repetindo no país europeu e são cada vez mais letais. Ao mesmo tempo, indústria do eucalipto só cresce, cada vez mais influente junto ao governo

Portugal, 2017: 110 mortos provocados por incêndios, 65 em junho e mais 45 quatro meses depois. 520 mil hectares queimados, 50% do total de área queimada de toda a União Europeia. Portugal, 2016: três mortos, 160 mil hectares queimados. Portugal 2005: 26 mortos, 340 mil hectares queimados. Portugal, 2003: 21 mortos, incluindo dois especialistas chilenos, 430 mil hectares de área queimada. No total, entre 2000 e 2017, perderam-se 165 vidas humanas, das quais 112 civis e 53 bombeiros e outros operacionais. Sem falar nos milhões de euros de prejuízos e das pessoas que ficaram sem casa e sem emprego.

O clima e vegetação autóctones potencializam a ocorrência de incêndios. Tal como nos outros países da Europa do sul. As alterações climáticas têm provocado períodos de seca prolongados, temperaturas mais altas e ventos mais fortes, tudo fatores que agravam a intensidade dos fogos. Tal como na Califórnia ou na Austrália. Mas por que será que em Portugal, um país menor que o Estado de Santa Catarina, morre tanta gente e tanta área florestal é queimada?

Porque o poder político, que deveria gerir a floresta, o ordenamento territorial e os meios de prevenção e combate aos incêndios, está refém de influentes interesses econômicos. Durante décadas, não existiu uma política de planejamento florestal, a falta de emprego empurrou a população para as grandes cidades e o interior do país se foi esvaziando. Este vazio foi ocupado pelos interesses de grandes empresas que encaram a floresta como uma fonte de exploração econômica e não como bem de interesse público que pertence a todos os cidadãos.

Entre os mais poderosos grupos está a indústria da celulose que produz papel e cuja produção depende do cultivo de eucaliptos. Esta espécie de árvore não é característica da fauna portuguesa, mas é plantada em modo de monocultura, ou seja, sem outros tipos de árvore pelo meio, o que aumenta os riscos de incêndio. Além disso, quando começa a arder funciona como um forte combustível e cada uma das suas folhas em chamas pode voar vários quilómetros, espalhando ignições por vários pontos distintos. Se estima que, neste momento, deva estar entre 900 mil e 1 milhão de hectares plantados com eucaliptos, ou seja, 23% da floresta, sem qualquer ordenamento. Só quatro países no mundo têm mais eucaliptais que Portugal: China, Brasil, Austrália e índia. O Brasil é 92 vezes maior que Portugal.

Em 2013, o governo agravou a situação e aprovou um projeto que ficou conhecido como a Lei do Eucalipto Livre. Esta lei simplifica plantações de eucaliptos, mas dificulta a plantação de espécies florestais autóctones como o sobreiro, o castanheiro, o carvalho ou a azinheira, que passa a ter que ser comunicada às autoridades. A iniciativa legislativa provocou uma enorme controvérsia. Vários especialistas, grupos ambientalistas, partidos políticos e até bombeiros foram publicamente contra a decisão. Sem resultados. Entre 2015 e 2016, 80% das novas plantações e 94% das replantações produzidas na floresta portuguesa tiveram como objeto os eucaliptos. A indústria ainda recebe subsídios dos fundos da União Europeia e incentivos fiscais.

Um lobby sobre o poder político

Em 2014, a indústria do papel e da pasta do papel gerou 224 milhões de euros. São quatro os principais grupos econômicos em Portugal ligados ao setor, mas é a Navigator Company quem detém a posição dominante, estando envolvida em todas as etapas de produção, desde a floresta ao papel. Pedro Queiróz Pereira, o nono homem mais rico de Portugal, é o presidente da Navigator Company e foi considerado por um conhecido jornal econômico como o 19º indivíduo mais poderoso em Portugal, à frente, por exemplo, do influente presidente da EDP, a companhia elétrica nacional. Queiróz Pereira também é um importante financiador de campanhas políticas. Nas eleições presidenciais de 2011, o presidente da Semapa doou à campanha do candidato vencedor o valor máximo permitido por lei. Além disso, nove antigos membros de governos já trabalharam ou trabalham para aquele grupo econômico.

Um lobby dentro do poder político

O secretário de Estado do Desenvolvimento Rural era diretor da Agroges, uma empresa de projectos agrícolas que tem como principais clientes empresas produtoras de celulose. Entrou para o governo como assessor da ministra da agricultura, saiu de volta para a Agroges, voltou mais tarde para o governo como secretário de Estado e, quando terminou o mandato, voltou para a empresa. Ainda assim, em 2016, assinou um artigo como “especialista” que defendia a cultura do eucalipto, mas fez questão de afirmar que “Não tenho, nem nunca tive, nenhum interesse particular no eucalipto.” Situação semelhante já havia ocorrido noutro governo. Um outro secretário de Estado das florestas trabalhava para a empresa que hoje é a Navigator e já era conhecido pela sua defesa do eucalipto. Ocupou o cargo em 2003, aquele que havia sido o pior ano de incêndios até 2017.

O novo governo prometeu a revogar a dita lei de liberalização do eucalipto, mas segundo a mais importante ONG ambiental portuguesa, a Quercus, o processo ficou na gaveta devido à pressão da indústria de pasta e papel. Aliás, pouco depois da promessa do governo, o poderoso presidente da Navigator avisou que enquanto permanecesse a indefinição legislativa, não haveria mais investimento em Portugal. Uma das suas fábricas, com um investimento de 120 milhões de euros está suspensa com a ameaça de ser deslocalizada para outros países. Outros representantes da indústria do papel já reclamaram por mais plantação de eucaliptos e criticaram a instabilidade legislativa provocada pela possibilidade de revogação da lei.

Entretanto, já no mês de outubro, depois da tragédia deste verão, o governo aprovou várias medidas para que nada se volte a repetir. Entre essas medidas, criou uma “Missão para a instalação do Sistema de Gestão Integrada dos Fogos Rurais” e nomeou Tiago Martins Oliveira para presidente. É um indivíduo com muita experiência e competências técnicas, mas é também quadro de uma grande empresa… a Navigator Company.

Susana Coroado é vice-presidente da Transparência Internacional em Portugal.

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