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Armas: a caixa de Pandora das exportações brasileiras


O Brasil é um ator de peso no comércio internacional de armamentos, mas tem uma das políticas de transparência mais opacas do mundo. Isso precisa mudar

US$ 288.633.575. Ou quase US$ 300 milhões. Este foi o valor total das exportações de armas e munições pelo Brasil entre janeiro e agosto de 2017, de acordo com o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços. O montante representa uma média diária de quase meio milhão de dólares em armas vendidas a 61 países de todas as regiões do mundo. Trata-se de um aumento de cerca de 25% sobre o valor exportado no mesmo período do ano passado. Estados Unidos (US$ 124 milhões) e Arábia Saudita (US$ 103 milhões) respondem por quase 80% das compras de armas e munições fabricadas pelo Brasil nos oito primeiros meses de 2017.

Os detalhes sobre as exportações de armamentos brasileiros, incluindo os critérios adotados para autorização das vendas, são desconhecidos ao cidadão comum. A razão: a política que regula a exportação de armas e munições pelo Brasil, a Pnemen, é baseada em documento secreto, em vigor desde a década de 1970. Entretanto, um acordo internacional que há quatro anos aguarda a ratificação do Brasil pode mudar esse cenário.

Desde segunda (11) até sexta-feira (15), quase uma centena de países se reúnem em Genebra, na Suíça, para a terceira Conferência dos Estados-Partes do TCA (Tratado sobre Comércio de Armas), o primeiro acordo global a regular as transferências internacionais de munições e armas convencionais – categoria que inclui uma ampla gama de armamentos, como tanques de guerra, aviões de combate, submarinos e porta-aviões, até armas pequenas e ligeiras O acordo foi aberto a adesões em meados de 2013 e hoje conta com 92 Estados-partes, incluindo França, Reino Unido, Alemanha, Argentina, México, África do Sul, Japão e Coréia do Sul.

Terceiro maior exportador de armas pequenas do mundo, segundo relatório da Small Arms Survey , o Brasil assinou o tratado em junho de 2013 e, como Estado signatário, participará pela terceira vez da Conferência em papel coadjuvante, sem possibilidade de voto em decisões substantivas e com reduzida capacidade de influir no funcionamento do acordo.

O motivo: o texto do TCA segue lento trâmite no Congresso, passo necessário para a conclusão do processo de ratificação. Já são mais de quatro anos desde a assinatura do TCA. Felizmente, no começo de setembro, parecer favorável foi aprovado pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara. O texto agora seguirá ao plenário da Câmara e, depois, para o Senado.

Espera-se que o pleno ingresso do Brasil no regime do Tratado sobre Comércio de Armas contribua para aumentar a transparência das exportações de armas do país, reconhecidamente uma das mais opacas do mundo. Diversos casos ilustram o impacto da falta de transparência das vendas de armas brasileiras na proteção dos direitos humanos.

Relatórios das Nações Unidas já apontaram a presença ilegal de armas fabricadas no Brasil na Costa do Marfim, país que se encontra sob embargo do Conselho de Segurança. Também no Iêmen, país que vive uma das mais sangrentas guerras civis do mundo, armamentos “made in Brazil” foram encontradas com conhecido traficante de armas, ele mesmo sob embargo das Nações Unidas.

Ainda sobre o Iêmen, organizações da sociedade civil relataram a presença de munições cluster — proibidas por tratado internacional — similares a modelo de fabricação brasileira em 2015, 2016 e 2017, empregadas possivelmente pela coalizão liderada pela Arábia Saudita. Este país, conforme já mencionado, é o segundo principal destino das exportações de armas brasileiras nesses setes primeiros meses de 2017.

Em junho passado, informações publicadas pela imprensa da Venezuela relataram o iminente embarque de milhares de granadas de gás lacrimogêneo para o regime de Caracas, em frontal oposição ao posicionamento anteriormente expressado por Brasília. Posteriormente, o embarque desse material foi interrompido por decisão do Ministério da Defesa — ainda que não tenha ficado clara a extensão da restrição de embarque nem os critérios adotados para estabelecê-la. De qualquer maneira, fica patente que a política de exportação de armas hoje em vigor é, além de secreta, falha em sua aplicação.

Como Estado-parte do TCA, o Brasil ficará obrigado a adotar medidas para tornar sua política de exportação de armas mais transparente, assegurando que suas transferências de armas não sejam utilizadas para violar restrições estabelecidas pela Carta da ONU (por exemplo, em caso de embargos de armas) ou para o cometimento de crimes de guerra ou contra a humanidade, genocídio, crimes transnacionais (incluindo narcotráfico, tráfico de armas e terrorismo) e graves violações de direitos humanos. Esta obrigação inclui a necessidade do estabelecimento de um procedimento de análise de risco que pondere, a cada transferência de armas, a possibilidade de cometimento dos ilícitos internacionais.

O TCA também estabelece a obrigação de os Estados-partes apresentarem relatórios anuais sobre suas transferências de armas convencionais e de manterem um sistema nacional e transparente de controle de armas. A opacidade que hoje impera nas transferências internacionais de armas pelo Brasil passará a constituir violação de obrigação internacional.

As obrigações de controle mais rígido e transparente no trânsito internacional de armas também têm um efeito sistêmico, ao estabelecer a obrigação de criação de listas e sistemas nacionais de controle em um mundo em que nem todos os Estados dispõem desse mecanismo, incrementando a segurança coletiva. Menos armas circulando de forma ilegal através de fronteiras significa menos armas pequenas caindo nas mãos erradas e, assim, trarão reflexo positivo na esfera da segurança pública e violência armada.

O regime internacional inaugurado pelo TCA entrou em vigor em dezembro de 2014, com a ratificação do 50º país. Atualmente uma ampla gama de temas está sendo definida durante as conferências dos Estados-partes e em reuniões de grupos de trabalho que se encontram ao longo do ano. Enquanto o Brasil não completar o processo de ratificação, será mero espectador da regulamentação dos critérios de controle das transferências globais de armas. Quanto antes o Brasil ingressar no regime, maior será sua influência no destino do TCA.

Ao encaminhar o texto do TCA ao Congresso, em julho de 2014, a mensagem assinada pelos Ministérios das Relações Exteriores, Defesa e Justiça afirmava que o tratado traria importantes impactos positivos para a paz e a segurança internacionais, e, internamente, para a segurança pública dos Estados e para a redução da violência armada. Mais de três anos depois, a assertiva segue válida. Resta ao governo brasileiro dar a prioridade que o tema merece.

 

Jefferson Nascimento, advogado, é assessor de política externa da Conectas Direitos Humanos.

NOTA DE ESCLARECIMENTO: A primeira versão deste texto trazia a informação de que o Brasil era o quarto maior exportador de armas pequenas do mundo. O dado foi atualizado em 13 de setemebro de 2017, às 10:43, após a publicação de um novo relatório em que o país aparece na terceira posição.

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