Certamente uma das palavras mais faladas no Brasil ao longo dos dois últimos meses é golpe, seja como um rótulo dado pelo movimento a favor do atual governo, defendendo sua manutenção no poder contra os oposicionistas (“não vai ter golpe”; “contra o golpe” etc) ou seja por aqueles que se opõem ao atual regime, e reagiram negativamente à pecha de golpistas (“acabou o golpe”; “não vai ter golpe, vai ter justiça” etc). Muito pouco, contudo, se fala do que é efetivamente um golpe, sua relação com a história política do Brasil e como o impeachment se encaixa (ou não) na definição de golpe.
Golpe de Estado é toda ação que visa subverter a lei de determinada nação, alterando as regras de seu regime para deposição ou manutenção de atores referentes ao exercício do poder político. Por sua vez, golpe militar é aquele golpe protagonizado pelas Forças Armadas, para os mesmos fins, sendo que o golpe popular tem seu protagonismo deslocado aos agentes populares, geralmente chamado de revolução por seu caráter geral de total ruptura com o regime até então vigente, enquanto que o golpe contra um estado democrático de direito nada mais é do que o golpe praticado contra uma nação organizada como Estado, com a soberania da lei e da decisão do povo, como é o Estado brasileiro.
Das definições acima, fica muito claro que o golpe não é somente aquele movimento para deposição de poder, mas também aquele para manutenção do mesmo, a despeito das regras estabelecidas. O golpe se caracteriza pela ruptura com a lei vigente, com a sobreposição da soberania legal por uma força de qualquer natureza que a supere, independente de ser esta ruptura armada, pacífica, negociada, evidente ou oculta. A retirada de um governante ou sua manutenção extemporânea, por definição, não caracteriza golpe, se assim estiver previsto na lei.
A história do Brasil é pontuada por golpes, sendo o mais lembrado o golpe militar de 1964, quando uma junta militar tomou o poder político e passou a governar o Estado, mas não pode ser ignorado o golpe de 1937 pela manutenção de Getúlio Vargas no poder mesmo após o término de seu mandato. E por que não mencionar a independência do Brasil com relação à Portugal? Poucos são os países que não tiveram a experiência de um golpe que alterasse e moldasse suas características políticas e jurídicas. Golpes bem ou mal sucedidos desenharam o mapa geopolítico do mundo atual.
Desde 1988 o Brasil vivia uma aparente harmonia política, com o pluripartidarismo sendo a regra que ditava uma alternância maior ou menor no poder. Em 2002 havia ocorrido a maior transição de poder da história democrática do país, alterando diametralmente o protagonismo político da ala de centro-direita para a esquerda, através da eleição de Luis Inácio Lula da Silva, o Lula. A transição era relativamente tranquila até que em 2005 um deputado federal revelou um suposto esquema de favorecimento às decisões governamentais mediante pagamento de propina, o famigerado “mensalão”. Quando estourou o mensalão, ainda que o partido de Lula tenha sido implicado, a crise passou longe de sua posição, permitindo uma fácil reeleição e a possibilidade do mesmo fazer sua sucessora com ainda alguma tranquilidade, perpetrando no poder político o mesmo grupo, de 2002 a 2014.
Contudo, a eleição de 2014 foi de fato a eleição mais controversa da recente democracia pátria, com uma tensão política que não se via no Brasil desde o movimento das Diretas Já, que culminou na promulgação da Constituição Federal em 1988. Foi uma eleição que polarizou o país, e fez com que interesses absolutamente antagônicos alicerçassem uma clara divisão de classes e mesmo de regiões do país, tendo seu resultado de reeleição da presidente Dilma Rousseff sido muito contestado, com denúncias de manipulação de resultados, compras de votos, escândalos de toda sorte que chegaram às raias da paranoia com a morte de um promissor candidato à Presidência, candidato este que se apresentava como uma terceira via.
Passados menos de dois anos, os escândalos foram se sucedendo e se agravando. Manipulação do Judiciário, CPIs diversas, prisões de homens-chave do governo, cassações de mandatos eletivos, prisões de grandes empresários, e uma operação deflagrada pela Polícia Federal e capitaneada por um juiz de Curitiba trouxeram de vez o clima de instabilidade política ao país. A chamada Operação Lava-Jato, nas quais novas etapas se sucedem semanalmente, investigou fatos e revelou indícios que ensejaram a possibilidade tanto de prisão do ex-presidente da república, de impeachment da atual presidente e de prisão do candidato da oposição, do presidente do Senado e do presidente da Câmara dos Deputados. É a maior crise institucional da república democrática do Brasil em toda sua história e os efeitos dessa operação estão trazendo o país às beiras de uma guerra civil.
Toda essa polarização levou o país às ruas. Diversas manifestações populares, contra e pró o atual governo tem ocorrido por todo o país, e fez com que praticamente todo intelectual, artista de televisão, juiz, político e pessoa comum assumisse uma posição, deixando no centro desse embate dois atos que se elevaram acima dos demais: a nomeação do ex-presidente da república Lula como ministro do governo e os pedidos de impeachment da presidente Dilma.
A eleição de 2014 foi a mais controversa da recente democracia pátria, com uma tensão política que não se via no Brasil desde o movimento das Diretas Já
O impeachment é previsto em lei e só pode ocorrer caso o presidente eleito cometa, durante seu mandato vigente um crime de responsabilidade, que significa ato do agente político que atente contra a lei e/ou especialmente a Constituição (contra a existência da união, contra o livre exercício do legislativo ou do judiciário, contra o exercício dos direitos políticos, contra a segurança interna do país, contra a probidade na administração, contra a lei orçamentária, contra a guarda e o legal emprego do dinheiro público ou contra o julgamento das decisões judiciárias) e por ter caráter político altamente subjetivo (o que de fato caracteriza atentar contra a lei?), o mesmo é julgado pelo Poder Legislativo, seguindo um rito específico que começa na Câmara dos Deputados e termina no Senado, precisando em regra de dois terços para aprovação. Ou seja, o impeachment é um processo totalmente legal, previsto em lei, com direito a ampla defesa e que envolve um elevado número de agentes políticos para sua efetivação, tendo inclusive já ocorrido no Brasil em 1992.
Por sua vez, a nomeação de Lula enquanto ministro feito de maneira atabalhoada e às pressas (envio de termo de posse antes da nomeação sem sequer ser assinado pela Presidente), evidenciou um caráter anormal e extraordinário da sua indicação, ressaltado pelo teor da conversa entre a presidente e o ex-presidente que chegou ao conhecimento público: “use em caso de emergência”. Que emergência seria essa? Justamente a sua iminente prisão, sendo que a nomeação teria por consequência deslocar o foro da primeira instância para a instância máxima judicial, o STF. É claro que não faz sentido dizer que o STF não tem condições para efetuar esse julgamento, porém ao mudar o foro de competência artificialmente, foi alterado de maneira abrupta o rito e o rumo das investigações em curso, causando efetivo atraso do procedimento judicial em curso – investigação que ocorre há anos. Não quer dizer que o resultado vá ser diferente, mas sim que a Justiça, poder judiciário, foi obstruída e teve seu livre exercício impedido pela presidente da República, o poder executivo.
Fica claro que o processo de impeachment não tem nenhuma característica de golpe, e sim de exercício de uma prerrogativa constitucional que existe justamente para garantir que ninguém esteja acima da lei, nem aquele que exerce o maior poder político. Caso contrário, não se trataria de democracia e sim de monarquia absolutista.
Contudo, e independente do resultado positivo ou negativo da nomeação ao ministério, o desvio de finalidade, com a atribuição de foro privilegiado a quem não o teria, que passa a ser investigado e julgado por ministros por Lula indicados, a presidente da república incorreu de maneira definitiva em crime de responsabilidade, através da violação de todos os princípios da administração pública e buscando perpetuar no poder ou com ele salvaguardar um grupo que de outra forma teria contas imediatas a prestar na justiça, cometendo assim um verdadeiro golpe de Estado nos moldes do golpe de 1937.
Benedito Villela é advogado, palestrante e articulista, especialista em Direito Contratual pela PUC-SP e concluindo LLM em Direito Societário pelo INSPER-SP