Nossa convivência com a covid-19 é feita de muitas incertezas e algumas poucas certezas. Bolsonarismos e trumpismos à parte, é certo que evitar o contato próximo com outras pessoas é a melhor estratégia conhecida para evitar a propagação da pandemia. Isso é afetado pela desigualdade econômica. Estará protegido quem tiver recursos para ficar em casa. O luxo da escolha é função da renda. Isolamento social não é para quem quer; é para quem pode. Os mais vulneráveis estarão mais sujeitos ao contágio e protegerão os mais afortunados.
Esse caminho, contudo, não é inevitável. Pode ser minimizado por meio de políticas que diminuam a desigualdade de oportunidades no isolamento. Foi esse o espírito da aprovação da renda básica emergencial pelo Congresso Nacional. O valor pago pode variar entre R$ 600 e R$ 1.200 por domicílio. Em sua implementação, o governo Bolsonaro não frustrou nossas expectativas em relação à sua (in)capacidade operacional: cadastrou pela internet, penalizando os mais pobres; atrasou o desembolso; fez pagamentos a beneficiários errados. A despeito disto, a Caixa Econômica Federal informa que foram feitos dois desembolsos a cada um de cerca de 58 milhões de beneficiários. Mas a lei aprovada em março de 2020 autoriza apenas mais um desembolso, pois a ilusão, à época de sua aprovação, era de que 3 meses seriam suficientes para nos livrarmos da covid-19. Será o suficiente? Não creio.
Hoje sabemos que nossa convivência com o vírus será longa. Estimativas (ainda incertas) indicam que apenas em julho deveremos atingir o pico de infectados, ponto a partir do qual o ritmo do contágio começaria a cair. E, de qualquer forma, a economia deverá levar muito mais tempo para se recuperar. Estimativa do boletim nº. 8 da Rede de Pesquisa Solidária indica que, se o ritmo de desligamentos no mercado de trabalho observado em abril continuar por mais dois meses, cerca de 27% da força de trabalho estará desocupada. Sem renda obtida no mercado de trabalho, perto de um quarto da população brasileira estaria jogada na pobreza. Por que não estender a renda básica emergencial? São três as objeções à sua extensão.
O benefício seria populista, argumentam alguns. O mesmo voto econômico que favoreceu Lula em 2006, por efeito da massificação do programa Bolsa Família, beneficiaria agora o presidente Bolsonaro. Há evidências de que isso já esteja ocorrendo. Pesquisa Datafolha realizada no final de maio mostra que o índice de “ótimo e bom” de Bolsonaro é quase o dobro entre os que pediram e já receberam o benefício na comparação com os que ainda não receberam. A aprovação dos que não votaram nele mas solicitaram o auxílio representa 7 pontos percentuais de sua taxa de aprovação. Alguém tem dúvida de que Bolsonaro tudo fará para estender o auxílio emergencial? Ainda assim, o cálculo populista de Bolsonaro não é uma razão para fazer oposição à extensão do benefício. Seria cruel sacrificar os mais pobres a despeito de quem se beneficie dos créditos eleitorais da renda básica emergencial.
Não é a ocupação, mas a renda que deve identificar aqueles que têm um dever moral para com aqueles que serão obrigados a se render primeiro
Uma segunda objeção é de ordem moral e tem pedigree malthusiano. Sustenta que programas de renda incondicional ferem o princípio da responsabilidade individual, ao criar incentivos para que os indivíduos optem por transferir aos demais a responsabilidade por sua própria sobrevivência. A escolha por declarar-se pobre e depender de programas sociais subtrairia indivíduos da atividade produtiva, reduzindo a riqueza agregada.
A objeção deve ser levada a sério. Um programa desta extensão requer o consentimento daqueles que pagarão impostos para financiá-lo. Não terá aceitação se não estiver assentado sobre uma crença partilhada de sua importância e legitimidade.
O fato é que a desocupação por efeito da covid-19 não é fruto de uma escolha individual. Na realidade, a desigual distribuição das condições de convivência com a epidemia implica o princípio da responsabilidade coletiva. Os afortunados que podem se dar ao luxo de escolher o isolamento têm um dever moral para com aqueles cujas condições de vida restringem essa escolha. Os primeiros deveriam encontrar formas de retribuir aos segundos a imunização que estes virão a lhe oferecer. Esta retribuição não deve vir sob a forma da caridade. Antes, a solidariedade deve ocorrer pela via tributária.
A terceira objeção é de ordem fiscal. A renda básica emergencial foi um sonho de outono; o inverno requer poupança, argumentam os opositores de sua extensão, prováveis leitores da fábula da cigarra e da formiga.
De fato, o mesmo boletim Rede de Pesquisa Solidária apresenta estimativa de que seriam necessários R$ 120 bilhões para estender a renda básica emergencial por mais três meses. A objeção deve ser levada a sério. É preciso encontrar formas de financiamento da extensão da renda básica que evitem agravar o precário estado das finanças do Estado brasileiro. Algumas possibilidades incluem: aumento da progressividade do Imposto de Renda (como sugerem Úrsula Peres e Fabio dos Santos); a revogação da isenção de dividendos; o fim da isenção do Imposto de Renda para gastos com saúde e educação; a revisão dos regimes especiais (Simples e Presumido) bem como dos subsídios governamentais. Em suma, trata-se de tornar mais progressiva a tributação direta e rever a política de subsídios.
Por razões legais, o aumento da tributação não poderia ser imediato. Nem é desejável que o seja, pois este deve ser previsível. Mas, a tributação sobre os mais ricos no futuro poderia financiar o gasto com os mais vulneráveis deste ano. De qualquer modo, é falaciosa a discussão entre servidores públicos e empresários sobre quem deveria dar sua contribuição neste momento. Não é a ocupação, mas a renda que deve identificar aqueles que têm um dever moral para com aqueles que serão obrigados a se render primeiro.
Reduzir a pobreza e quebrar o Estado não andam necessariamente juntos.