As características do documentário militante brasileiro

Esta pesquisa analisou as características dos documentários brasileiros que, ao longo das décadas, buscaram influenciar conflitos sociais e foram feitos junto a movimentos. O estudo procurou entender como as lutas dos povos indígenas trazem novos elementos e narrativas para a linguagem cinematográfica do país.

O trabalho avaliou a contribuição do filme “Martírio”, que documenta e denuncia as violências sofridas por décadas pelos Guarani-Kaiowá no estado do Mato Grosso do Sul. O documentário exibe características estilísticas e possibilidades para o cinema militante produzido atualmente.

Qual pergunta a pesquisa responde?

Quais as características do documentário militante feito no Brasil recente e como “Martírio” (2016), filme feito pelo Vídeo nas Aldeias, junto aos Guarani-Kaiowá, contribui com essa tradição?

Por que isso é relevante?

No fim do século 20, o cinema militante chegou a ser dado como morto por autores de peso. A necrópsia se passou em um período de diminuição do papel da crítica cinematográfica, de enfraquecimento da esquerda no ocidente em decorrência da queda do muro de Berlim e, no Brasil, de uma ruptura na produção de filmes devido à extinção da Embrafilme por Fernando Collor. Era o aparente “fim da história” e triunfo do neoliberalismo. Uma década depois, a partir do início dos anos 2000, com o pleno funcionamento da Ancine no Brasil e a disseminação da tecnologia digital, o país passou a assistir a uma proliferação dos filmes feitos junto a movimentos e no entorno de conflitos e lutas sociais. Esse cinema militante definitivamente não estava morto.

Ao longo da história de pelo menos 60 anos do documentário militante no Brasil, que vem de antes do golpe militar aos anos recentes, foram realizados dezenas de filmes junto a movimentos sociais ou como ferramentas nas lutas e demandas populares. Muitas transformações ocorreram em termos de temas, suportes técnicos, condições de realização e circulação nesse conjunto de filmes.

A tese apresenta dezenas de filmes que podem ser considerados militantes e permite perceber linhas de continuidade e momentos de ruptura nesse fluxo. Uma das questões que move a pesquisa é o cinema indígena que vem sendo realizado por organizações da sociedade civil. A tese pode também fornecer pistas úteis para compreendermos as condições políticas e técnicas do momento contemporâneo para o cinema militante e lançar luz sobre caminhos e estratégias possíveis.

Resumo da pesquisa

A pesquisa examina “Martírio”, filme de 2016 dirigido por Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho e Tatiana Almeida, indagando como a produção pode operar na luta dos Guarani-Kaiowá pela retomada dos seus territórios e como a obra inova em relação aos procedimentos do documentário militante brasileiro.

Isso se realiza através de três movimentos principalmente:

1) uma análise da fortuna crítica acerca da relação entre cinema e militância, que passa pelo que se escreveu no Brasil desde a década de 1960, pelas proposições de Argentina, Cuba e da crítica cinematográfica francesa. O apanhado permite ter em vista diferentes questões e perspectivas lançadas sobre esse cinema.

2) uma análise de como a militância se realizou no documentário brasileiro desde “Maioria absoluta” (1964), de Leon Hirszman, até “Martírio”. Entre esses filmes há uma série de convergências formais e temáticas, ao mesmo tempo em que há um grande salto de tempo e diferenças formais. A tese percorre o caminho de um filme a outro, apresentando, nesse percurso, diversos outros documentários e seus modos de fazer, constituindo assim um olhar sobre o devir da militância no documentário no Brasil.

3) uma análise de “Martírio” voltada aos procedimentos acionados para operar em favor da causa a que se dedica, que é a luta dos Guarani-Kaiowá pela retomada dos seus territórios no estado do Mato Grosso do Sul. Alguns desses procedimentos aos quais é dado destaque: o modo de contrastar o mundo vivido pelos Guarani-Kaiowá com o cotidiano não indígena sul-mato-grossense; o lugar fronteiriço assumido pelo diretor-locutor, que nem é indígena e nem compartilha da perspectiva hegemônica não indígena; o modo como a locução opera no filme, a qual difere simultaneamente da “voz de Deus” do documentário clássico e do princípio de não intervenção do cinema direto; o modo como o filme busca intervir a curto prazo em um conflito em curso; a maneira como, a médio prazo, o filme pode operar como contra-discurso às verdades dos fazendeiros que dominam a mídia local e às verdades oficiais do Estado; a maneira como, a longo prazo, “Martírio” constitui e organiza um arquivo de violências contra os povos indígenas da região e um arquivo da ocupação do território por esses povos; o modo como o filme pode se colocar como aliado na luta do outro sem, com isso, dominar o outro e a narrativa.

Quais foram as conclusões?

A tese desfaz estereótipos associados aos documentários militantes, argumentando que, ao instrumentalizar o cinema, esses filmes aceitam um desafio que lhes faz inventar e permite levar o cinema além do mero espetáculo comercial e/ou artístico. Esse desafio que move o cinema militante é o de afetar a perspectiva do público frente à urgência de um conflito. Ao contrário de entendermos como improdutivo o caráter instrumental que é conferido aos filmes pelos cineastas militantes, pensamos que a militância realiza uma excedência em relação ao cinema, permitindo-o ir além de si mesmo.

A pesquisa destaca também o deslocamento recente da categoria de “militância” e, consequentemente, de “documentário militante”, que passam a incluir um espectro mais amplo de lutas e posicionamentos que vão além das questões trabalhistas e das formulações de inspiração marxista (as quais, por muito tempo, perfizeram o que se poderia entender por “militância”) e que passam a incluir, por exemplo, as lutas dos povos indígenas, as pelos direitos animais, as lutas por terra e as lutas pela Terra.

Quem deveria conhecer seus resultados?

Pessoas interessadas na história dos movimentos sociais brasileiros, no cinema brasileiro, no cinema indígena, nas relações entre cinema e política; documentaristas engajados; militantes de quaisquer organizações.

Carlos Eduardo da Silva Ribeiro é doutor em comunicação pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), com doutorado-sanduíche na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Mestre em sociologia pela UFPel (Universidade Federal de Pelotas). Bacharel em cinema e animação pela UFPel.

Referências

  • BRASIL, André. Retomada: teses sobre o conceito de história. In: Catálogo do Forum.doc. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2016.

  • BRENEZ, Nicole. Contraataques. In: DIDI-HUBERMAN, Georges (Org.). Insurreciones. 1a ed. Espanha: Museu Nacional d'Art de Catalunya, 2017. p. 61-75.

  • CESAR, Amaranta. Cinema como ato de engajamento: documentário, militância e contextos de urgência. C-Legenda - Revista do Programa de Pós-graduação em Cinema e Audiovisual, n. 35, Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, p. 11-23, 2017.

  • COMOLLI, Jean-Louis. O espelho de duas faces. In: YOEL, Gerardo (Org.). Pensar o cinema: imagem, ética e filosofia. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

  • FELIPE, Marcos Aurélio. Ensaios sobre o cinema indígena no brasil & outros espelhos pós-coloniais. Porto Alegre: Sulina. 2020.

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