A trajetória de uma escritora negra no Brasil do século 19

 

Esta pesquisa analisou a trajetória de Maria Firmina dos Reis (1825-1917), escritora negra e maranhense, que é considerada uma das pioneiras da literatura afrobrasileira. A partir do análise de obras como o romance "Úrsula", de 1859, do conto “Gupeva”, de 1861-2,  e do conto “A escrava”, de 1887, o autor busca entender os significados políticos e sociais dos escritos da autora. O estudo destaca o período em que a escritora caiu no esquecimento e relata a recuperação gradual de prestígio de Maria Firmino dos Reis a partir dos anos 1960.

A qual pergunta a pesquisa responde?

Publicado em 1859, na cidade de São Luís, capital da então província do Maranhão, o romance "Úrsula", de Maria Firmina dos Reis, é considerado o primeiro romance de autoria negra e feminina do Brasil, além de ser o primeiro de cunho abolicionista. É, também, o romance inaugural da chamada literatura afro-brasileira. Apesar disso, e considerando os demais escritos da maranhense, o conjunto de sua obra ficou esquecido por quase um século, tendo sido devidamente recuperado por pesquisadores brasileiros somente a partir da década de 1960. Se Maria Firmina dos Reis é pioneira das letras nacionais em diversos aspectos, por que seu nome continua ausente das principais historiografias literárias? Por que, ainda hoje, desconhecemos o conteúdo de seus textos e tampouco a estudamos nos bancos das escolas e universidades de todo o país? No sentido de preencher essas lacunas e dar uma resposta a esses questionamentos é que desenvolvi minha pesquisa de mestrado, que teve como objetivo compreender a trajetória intelectual dessa importante escritora afrodescendente em meio às contradições que marcaram o contexto político e social do Brasil do século 19.

Por que isso é relevante?

As pesquisas que investigam a literatura escrita por mulheres no Brasil, em geral, dirigem-se a questões relativas a cânone; teoria e gênero literários; críticas de cunho feminista; ou, simplesmente, visam reunir material para catalogação. Um aspecto, porém, tem sido pouco explorado nesse universo: as contribuições de mulheres escritoras no campo de estudos sobre o pensamento político brasileiro. Quando se trata de analisar essa temática no século 19, particularmente, o volume de trabalhos é ainda mais escasso. Mesmo na seara das ciências sociais, cujas pesquisas consideram diversas abordagens teóricas e metodológicas, incluindo o estudo sociológico de questões ligadas às várias linguagens artísticas, como a literatura, pesquisas dessa monta são ainda pouco numerosas. Esse motivo, por si só, já justifica a realização de um trabalho como esse, que leva em consideração o tratamento da obra de uma intelectual afrodescendente que, em alguma medida, marcou a vida cultural brasileira oitocentista.

Resumo da pesquisa

O presente estudo tem por objetivo realizar uma investigação acerca da trajetória intelectual da escritora maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917), a partir da análise de registros biobibliográficos e de fragmentos literários extraídos do romance “Úrsula”, publicado em 1859; do conto “Gupeva”, de 1861-2; e do conto “A escrava”, de 1887, com o intuito de alcançar, criticamente, os sentidos que a autora atribuiu à causa abolicionista em vigência naquele momento. Uma empreitada como essa permite o deslocamento da obra literária para uma pesquisa em ciências sociais, mais especificamente, numa perspectiva interdisciplinar, que dialoga com os estudos literários e os estudos de pensamento social brasileiro. Nessa direção, a literatura assume relevância como um objeto privilegiado de investigação, capaz de atravessar o tempo e de oferecer ao pesquisador pistas significativas sobre o pensamento político da escritora, as formas como aqueles sujeitos viviam em sociedade e, não menos importante, a maneira como lidavam com as questões mais latentes de sua geração.

Quais foram as conclusões?

Embora a atuação política de Maria Firmina dos Reis tenha se dado de modo indireto e por meio das letras, ela não pode e nem deve ser subestimada. Até porque, como sugere a pesquisadora Maria Lúcia de Barros Mott: “a resistência e a luta da mulher contra a escravidão resgata uma forma de participação informal exercida, quase sempre, fora das esferas de poder e dos quadros político-partidários, mas nem por isso menos importante e eficiente”. Daí, então, a necessidade de se recuperar a produção literária e as ideias dessa escritora, uma das poucas intelectuais afrodescendentes do século 19 de que se tem notícia, cuja trajetória de vida, desde muito cedo, a faria compreender a importância de se propagar e de se estabelecer naquela decadente sociedade brasileira oitocentista os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, contribuindo, assim, para a construção de um país mais justo e sem opressão.

No Brasil, os muros invisíveis que separam as instituições de Ensino Superior do restante da sociedade, infelizmente, ainda são uma realidade bastante presente em nosso cotidiano. Contudo, acredito que todo conhecimento deve estar acessível a quem possa interessar. Já passou da hora de Maria Firmina dos Reis ser lida, estudada e amada por todos nós, brasileiros. Sendo uma das primeiras mulheres, e mulher negra, a escrever um romance em solo nacional, resgatar suas ideias e torná-las públicas é, para além de um ato político, uma questão de justiça. Em 2017, no centenário de sua morte, desejo que a voz dela se amplie, ecoe e encante as novas gerações de leitores e leitoras e que, de uma vez por todas, seu nome passe a ocupar o lugar que lhe é devido: o de pioneira das belas letras nacionais.

Quem deveria conhecer seus resultados?

Por se tratar de uma escritora nacional pioneira em vários aspectos, acredito que todos os brasileiros deveriam se interessar pelas ideias e pelo conjunto da obra de Maria Firmina dos Reis. Infelizmente, seu nome continua desconhecido pela grande maioria do público e tampouco consta nos manuais de literatura e nas historiografias literárias nacionais.

Foto: Reprodução
Esta imagem, disponibilizada no livro "Maria Firmina, fragmentos de uma vida", de José Nascimento Morais Filho (1975), é a reprodução do carimbo comemorativo criado em homenagem ao sesquicentenário de nascimento da escritora e que foi lançado, solenemente, em 11 de outubro de 1975, na cidade de São Luís, no jardim do Museu Histórico e Artístico do Maranhão. Trata-se de uma marca filatélica, produzida pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, com tempo determinado de utilização e que se destina a difundir o trabalho de relevantes personalidades e instituições, bem como assinalar um dado acontecimento, destacando, comumente, o motivo, a legenda, a data e o local de sua emissão. O detalhe da parte inferior, que representa um grilhão de ferro sendo rompido, é marca significativa da campanha abolicionista que Maria Firmina dos Reis empreendeu através de sua literatura.
 

Rafael Balseiro Zin é doutorando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (Neamp). Desenvolve suas pesquisas nas áreas de pensamento social brasileiro, estudos culturais e estudos literários, atuando, principalmente, com os seguintes temas: trajetória intelectual dos escritores negros no Brasil; literatura abolicionista escrita por mulheres no Brasil dos oitocentos; literatura afro-brasileira e resistência; história da população negra no Brasil; e políticas de promoção da igualdade racial. Vive e trabalha em São Paulo.

Referências

  • ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
  • ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
  • CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000 [1959].
  • CHAIA, Miguel. Arte e política: situações. In: CHAIA, Miguel (Org.). Arte e Política. Rio de Janeiro: Azougue, 2007, p. 13-39.
  • DUARTE, Eduardo de Assis (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (vol 1: Precursores). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
  • LOBO, Luiza. Autorretrato de uma pioneira abolicionista. In: LOBO, Luiza. Crítica sem juízo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993, p. 222-238.
  • MORAIS FILHO, José Nascimento. Maria Firmina, fragmentos de uma vida. São Luís: Governo do Estado do Maranhão, 1975.
  • MOTT, Maria Lúcia de Barros. Submissão e resistência: a mulher na luta contra a escravidão. São Paulo: Contexto, 1988.
  • REIS, Maria Firmina dos. Úrsula (romance); A escrava (conto). Edição comemorativa dos 150 anos da 1ª edição. Atualização do texto e posfácio de Eduardo de Assis Duarte.

    Todos os conteúdos publicados no Nexo têm assinatura de seus autores. Para saber mais sobre eles e o processo de edição dos conteúdos do jornal, consulte as páginas Nossa equipe e Padrões editoriais. Percebeu um erro no conteúdo? Entre em contato. O Nexo faz parte do Trust Project.

    Em alta